Curso por correspondência

    Sei exatamente como fazer para seqüestrar alguém. Sei  também como manter a vítima em estado de medo e cooperação. Sei
que uma das melhores formas de convencer a família a pagar o  resgate é mandar um pedaço da orelha, ou um dedo da pobre vítima —  já vi diversos casos de sucesso. E sei que se eu for violento o suficiente, ainda que seja preso, serei respeitado na confraria da  prisão, pois lá já chegarei com a fama feita e me bastará deitar na  cama.

     Se tiver que enfrentar a polícia, sei que devo mirar na testa do  policial, pois ele estará usando um colete à prova de balas muito provavelmente, já que acompanho entrevistas dos policiais pelo  rádio. E que o melhor local para libertar a vítima é em alguma estrada  vicinal, onde levará algum tempo para se comunicar — isso me foi amplamente divulgado.

     Aprendi que devo utilizar um menor para as execuções  sumárias, e que ele será um líder ao passar algum tempo na FEBEM,
pois todos os futuros hóspedes daquele reformatório (sic) saberão da sua saga de violência e sangue-frio, a que assistem diariamente em vários canais. Será um aliado muito útil e, caso sumam com ele, haverá algum colega que queira imitar o líder desaparecido, depois herói e famoso, e me ofereça seus préstimos em troca de seu caminho rumo à glória.

     Também aprendi que posso assaltar alguém nalgum  cruzamento quando o semáforo fechar, e que me basta sair andando
calmamente na contra-mão que não serei importunado, pois os  demais motoristas sabem que correrão riscos se tentarem me impedir. Eles nunca esquecem essa lição que recebem diariamente após o  jantar durante o jornal da TV, portanto, vou tranqüilo.

     Tenho um razoável conhecimento das táticas da polícia na  perseguição de bandidos. Acompanho muitas delas ao vivo ou em
replay. Meu temperamento violento eu saberei modelar, pois tenho visto muitos modelos de sucesso que se tornam grandes heróis, tantos heróis, e ganham cachês milionários para rasgar corpos com metralhadoras, e enfiar granadas na boca das pessoas como forma de intimidação muito utilizada pelos libertadores que pretendem salvar o mundo do mal, segundo informações contínuas que recebo.

     Medo de sangue? Isso é café pequeno, não tenho nem um pouco. Estou exaustivamente acostumado a ver cabeças sendo
cortadas e sangue espirrando em esguichos. Tampouco me impressiona decepar um braço, ou uma perna de alguém, posto que
já estou até enjoado de ver tais cenas em cores de vermelho rubro — posso até gravá-las para melhor aprendizado. Requintes de
crueldade e tortura conheço algumas arrobas deles. Arrancar olhos, enfiar serpentes goela abaixo do torturado, e outras práticas muito eficientes, já não me são novidades. A cada dia aprendo alguma coisa nova, terrível e extremamente eficaz, segundo as últimas notícias.

     Abusar de jovens em festas e baladas, entorpecendo-os com qualquer nova droga, que me venha ao conhecimento no telejornal, também é meio fácil de otimizar meus proventos ilegais, porém compensadores, como percebo ao ler, ouvir e ver as histórias épicas dos que entraram no caminho do crime e da fama.

     Não tenho duvidas do meu sucesso, do respeito que terei entre os de minha espécie, além de galgar patamares de glória que
jamais alcançaria em minha pacata vida de cidadão. E me parece que temos todos que ser famosos para sermos ricos e felizes. Assim está escrito, dito e filmado.

     Como adquiri tão vasto conhecimento sem jamais ter cometido um crime? Aprendi na mídia todos os métodos, descobri os
segredos da polícia através de incontáveis reportagens que me deram um rico panorama multimídia das ações criminosas. Percebi
como agem fascínoras, terroristas e guerrilheiros, nos seus mínimos detalhes, através das dicas com que Hollywood, e alguns cineastas nacionais, nos presenteiam todos os anos. Não preciso de escuta clandestina nem de informações secretas. Tenho tudo pronto e bem explicado na TV, nos filmes, no rádio e nos jornais.

     Embora esteja em São Paulo e tenha um trabalho digno, estou teórica e cientificamente preparado para uma próspera vida de
crimes, ainda que não tenha interesse algum em mudar de ramo.

     Já se eu fosse um jovem miserável, esfomeado, recebendo tamanha carga de informações práticas ao vivo ou em VT sobre a
delinqüência e seus métodos — sim, porque talvez não tivesse o que comer, mas televisão com certeza teria — observando que os mais espertos compram mais, e que no mundo só vale quem compra e é esperto; e receber pouca, ou nenhuma informação, nem imagens sobre brandura e respeito, e outras atividades de beleza e solidariedade — cujo interesse na mídia é quase zero- não sei o que seria de mim.

Alberto Carmo

    Parágrafo único — Enquanto escrevo este texto estou recebendo na TV a cabo — uma espécie de curso supletivo de iniciação ao crime, ao medo e à violência para jovens da classe média e versões superiores — um cardápio singular: "O espírito do crime", "Ambição em alta voltagem", "Invasão cósmica", "Na mira do inimigo", "Fogo contra fogo", "O crime do século", e etc. Vou tomar um analgésico e ja volto, pois assim que o filme terminar preciso zapear correndo para ver os helicópteros me mostrarem corpos entre ferragens, acidentados agonizantes, que vão tornar meu sangue mais gelado ainda.

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