"A LEI DO PRÓPRIO", OU POR QUE NÃO VI DERRIDA NO BRASIL

A morte de Derrida nesta sexta-feira dia 8 de outubro me levou a uma reflexão tipicamente "desconstrutivista":  vi como a estrutura institucional universitária  se imobiliza num campo fechado, num campo minado, naquilo que Derrida chamava de «a lei do próprio» - ou seja, a universidade que o trouxe se apropriou do filósofo aqui no Brasil e só deixou aproximar-se dele quem ela quis.
Eu não consegui "ingresso" para vê-lo aqui. Apesar de ter dito que inclusive tenho trabalhos escritos sobre ele. O uso da expressão desse conceito, a "lei do próprio", está em suas próprias possibilidades de disseminação.
Quando Derrida usa o termo, ele explora os vários significados do francês "próprio": propriedade, proprietário, apropriação, expropriação, com todos seus sentidos relacionados de propriedade, pertencer, como também do valor de proximidade, por exemplo,  proximidade da fala para a consciência, ou da consciência para seu objeto, ou de concepções de verdade como a aproximação de representação para seu objeto (ver nosso "Novo manual de teoria literária", Petrópolis, Vozes, cuja 3ª edição que está saindo por esses meses).
Para Derrida, a primeira tarefa da Desconstrução é expor a natureza problemática de todo discurso "centrado", ou seja, os  que dependem de conceitos de verdade, presença, origem, ou  seus equivalentes.
A Desconstrução busca habitar as margens dos sistemas tradicionais do pensamento, para pressionar seus limites e testar suas fundações, fazendo a interpretação ilimitada de um jogo semântico irrestrito, que já não se ancora em qualquer significado. Este jogo irrestrito não deveria ser levado a significar, mas deve ser um pensamento livre e subjetivo.
Derrida argumenta que a possibilidade de significação depende em geral de um irreduzível efeito de "disseminação", pois  o vagar da significação é a condição insuperável da produção do significado.
"Cuidado com os abismos e as gargantas, mas cuidado também com as pontes (diz ele). "Cuidado com o que abre para o exterior e para o sem-fundo, mas cuidado também com o que, fechando-se em si mesmo, não cria senão um fantasma de cercado, e se coloca à mercê de qualquer interesse ou se torna perfeitamente inútil. Cuidado com as finalidades, mas o que seria uma universidade sem finalidade?", diz em "O olho da universidade".
A desconstrução pode ser entendida em parte como um ceticismo anti-humanista poderoso, que considera todas as referências de verdade como "teológicas". Representa uma aproximação importante e até certo ponto pode ser considerada como um movimento de contestação e de dúvida radical de uma época de globalização.
A crítica de Derrida às construções metafísicas  deve ser associada ao termo "logocentrismo", com que Derrida descreve a tradição da filosofia ocidental, de perpetuar uma oposição fundamental entre falar e escrever.
Esta tradição vê a fala como possuindo uma imediação vital, uma "presença": a presença da fala do orador, a presença de sua consciência.
Escrever rompe esta presença, pelo advento do sinal gráfico, ou marca escrita. Ali a voz é alienada e entra no reino da alteridade, ausência e morte.
Escrever é visto tradicionalmente como o exemplo da ausência, associado com a queda da ordem do signo, onde o sinal e o signo escrito em particular só é compreendido como "o significante do significante"; quer dizer, como somente uma representação secundária, de uma fala que é uma representação, mas que é também aproximação de um pensamento virtualmente presente para a consciência.
De acordo com Derrida, esta ligação inextricável entre presença e  palavra falada é a base da fundação metafísica, e por conseguinte é a pedra mais teimosa a desalojar pela desconstrução, até mesmo nesses discursos que vigorosamente atacam a tradição metafísica, como os de Sigmund Freud, Karl Marx, Ferdinand Saussure, Edmund Husserl, Martin Heidegger e Friedrich Nietzsche. 
Por isso mesmo é que eu queria ouvi-lo ao vivo. E vivo.

Rogel Samuel

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N.E.: Jacques Derrida, nasceu em El-Biar, Argélia, em 15 de julho de 1930 e faleceu em 8 de outubro de 2004, na França. O principal teórico do desconstrutivismo esteve no Brasil por três ocasiões. Em 1995, num evento organizado pela USP e PUC-SP, o Professor profere, no grande auditório do MASP, a palestra História da Mentira: prolegômenos , cuja tradução foi feita por Jean Briant e publicada em Estudos Avançados 10 (27), pela Edusp em 1996.  Em junho de 2001, participou junto com René Major, no Rio de Janeiro, dos Estados Gerais da Psicanálise . Os principais temas discutidos foram: 1. Derrida e a Psicanálise; 2. Hospitalidade e Amizade; 3. Crueldade e Soberania; 4. O Futuro do Homem Face à Tecnologia. Em agosto deste ano, 23/8/2004, ele foi o tema central do Colóquio Internacional Pensar a Desconstrução, no Teatro Maison de France, no Rio de Janeiro. Nos três dias de atividades, diferentes pontos de vistas das obras derridianas foram analisados. Ele veio ao país a convite do professor da UFJF Evando Nascimento, um dos organizadores do evento. A promoção é uma parceria do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFJF e do Consulado Geral da França no Rio de Janeiro. Derrida ficou até o final do evento (dia 25/8) e se apresentou no primeiro dia com a palestra "O perdão, a verdade, a reconciliação: qual o gênero?"

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