CEMITÉRIO DE NAVIOS

          “Aqui os navios se escondem para morrer.” Eis um exemplo de verso magistral, de grande mestre, como Lêdo Ivo sabe ser. Eu disse a minha mulher: “Quando crescer, quando aprender a escrever, quero escrever assim.” Os parnasianos gostavam de fechar seus sonetos com chave-de-ouro. Eu admiro os poetas que sabem abrir os seus poemas com chave-de-ouro. Como esta: “Aqui os navios se escondem para morrer.”

          Você já sabe que, depois disso, só pode vir um grande poema. Depois dessa abertura, não-solene, não-difícil, não-intelectualizada, mas simples, direta, sugestiva, deixando antever um mundo novo, enigmático, paisagem de sonho, de delírio, alucinações, brumas, trevas e,enfim, luzes.

          Os elefantes, quando sabem próximo o fim, empreendem a última jornada, para o seu cemitério. Os navios empreenderiam, também, essa derradeira jornada? Os navios morrem? Acabam? Deles restam preciosas relíquias, como dos elefantes as presas de marfim? Têm consciência, como os homens, de que são finitos? Não estará o poeta falando dos homens? Mas temos que ver segundas intenções em tudo que os poetas escrevem?

          Os ratos são os últimos a abandonar o navio? Certo, mas tenho o direito de ver as almas à espera de uma impossível ressurreição, se não posso ver os ratos nessa espera, como quer o poeta? Ó esplendor do mundo, perecível como tudo. Não estará o poeta lembrando o Eclesiastes, que diz que tudo se acaba? Não fica de nós nem os nomes que aprendemos a soletrar quando meninos.

          E vem a noite, a terrível noite, como um cão lambendo os nossos restos mortais. E a beleza das gaivotas, no cio, nos lembra o que perdemos de mais precioso, com o nosso corpo: o sexo. É inútil a luz do dia, é um olho cego, nunca mais subiremos os degraus do universo. Não subiremos a escada de Jacó, não lutaremos com o anjo. Estamos derrotados. As paliçadas que erguíamos contra o mundo, loucos de amor, carnal, animal, ruíram.

          Somos navios perdidos, a velhice nos prostrou por terra. Estamos no fundo do mar, ou do poço. Surdos, caducos, somente escutamos os nossos próprios gritos. Depois da neblina pode haver o nada. Somos um rebanho de cordeiros no negrume da noite. Ah, não saber o que pode haver além da treva!

          É inconcebível o nada. Por isso nos angustiamos. Nenhuma fé nos salva, toda ressurreição soa impossível, se pensada com o corpo, com a nossa fragilidade humana. Somos navios que se escondem para morrer, talvez porque envergonhados de nossa fraqueza.

          Que o poeta me perdoe dessa leitura de seu poema. Sei que ele falou só de navios. Mas eu sou humano, sou fraco: na morte dos navios, vejo a minha morte. Lêdo Ivo iria sorrir, superior, ao ler isto. Não porque se sinta superior. Pelo contrário, porque é modesto. Pensou só nos navios, explicaria. Criou imagens, montou-as num campo específico, fez um poema. Mas esse campo específico é o mar, que lembra a morte. E era noite, isto é, morte. E o mar era um cemitério. Falamos da morte dos outros, ou das coisas, para não falarmos da nossa.

          Grande poeta, Lêdo Ivo. Diz muito, quando parece que nem está dizendo. Apenas criando imagens, criando linguagem. Há poetas que, porque sabem, não precisam dizer. Fazem. Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina. É Lêdo Ivo. Estivemos a sós por um bom tempo, quando fui premiado na V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira; fiquei acanhado em lhe perguntar, ou ele não teria nenhum segredo guardado: é quem, porque sabe, faz. Não foi à toa que João Cabral apontou-o como o melhor de sua geração. A mesma deles dois, diga-se de passagem. “Trouxeste a chave?” – pergunta Drummond. Lêdo Ivo lembra, no poema sobre os utensílios quando já inutensílios, que guardamos “até a chave que não abre nenhuma porta”.

José Carlos Mendes Brandão

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