Deslumbrado pelos ingleses

Fernando Sabino andava por essas mesmas ruas londrinas. Num dia de primavera, se quisesse, poderia dispensar o ônibus e fazer uma caminhada da sua casa, em Priory Road, até a Embaixada do Brasil, que fica bem perto de Marble Arch. Meses antes do golpe militar de 19 64, o escritor mineiro fora nomeado adido cultural no Reino Unido, país de onde também passou a mandar reportagens e crônicas para revistas de moda e para o Jornal do Brasil. Definiu Londres como “cidade desconcertante” e, sob o impacto das notícias chegadas do Brasil, escreveu numa carta a Otto Lara Resende: “[Os ingleses] são formidáveis – eu por mim não sairia daqui nunca mais”. Manteve-se no cargo até 1966, demonstrando a peculiar linha de continuísmo que caracteriza a vida política brasileira. Não deixava de enviar ao amigo uma renovada profissão de fé na mineirice, ao confessar que “não quero aparecer nem cá nem lá, nessa fase meio maluca da nossa política”, ao mesmo tempo em que se aprumava para cumprir o “encargo oficial” de receber Carlos Lacerda, que “vem a Londres para explicar ao povo inglês a ‘revolução'. Os ingleses vão ficar boquiabertos”.

Enquanto se esquivava tanto das adesões indubitáveis quanto das mordazes críticas ao novo regime, esforçava-se para ser bom funcionário. Assim como fez durante toda a sua carreira de cronista, Fernando Sabino queria mostrar trabalho, e não deixou de registrar junto ao amigo Hélio Pellegrino: “Estou me entrosando bem com o pessoal da Embaixada e com o embaixador, mandei um relatório de 12 páginas logo no primeiro mês”. Só se permitia ser explícito quando salientava a sua própria discrição e, ao exibir o homem cordial que sempre fora, definiu o então embaixador em Londres como “uma espécie de Magalhães Pinto, nascido no Rio mas mineiríssimo. Com ele eu estou mais mineiro ainda – muito atento para não sair das fronteiras do itamaratismo”. Otto Lara Resende continuava a receber mais informações sobre esse embaixador que ensinou ao cronista outras “manhas de mineiro por adoção: dormir no chão para não cair da cama, não dar passo maior que as pernas, fingir de morto, esperar pela cor da fumaça – tudo isso que você conhece tão bem”. Outros nomes de políticos e de escritores surgem na reveladora correspondência publicada em Cartas na mesa (1989), o que bem comprova as conexões na elite no momento em que as mudanças sociais prometidas foram eliminadas por um ato de força.

Mas até mesmo as revelações, para Fernando Sabino, encontravam limites. Nas suas cartas aos amigos mineiros, as omissões também parecem traços definitivos de um caráter. No mesmo ano de 1964, ele promete: “Este assunto, o de adido, daria uma boa conversa, mas não em carta”. Para Paulo Mendes Campos, ele explica que “brasileiro no estrangeiro fica tão engraçado, de uma nacionalidade diferente, é uma espécie de gente meio alheada, no mundo da lua, formando uma comunidade esquisita a qual pertenço, como numa maçonaria”. E arremata as suas impressões com um primor lacunar: “E os diplomatas! Daria um livro que não vou escrever”.

Cauteloso e astuto como possa ter sido em relação ao Brasil, nada impediria que o cronista fosse bastante pródigo em observações sobre a vida britânica. Basta lembrar que o título de um dos seus livros de crônicas, A inglesa deslumbrada (1967), resume as diferenças de percepção entre os brasileiros e aqueles longínquos ilhéus que estavam ao seu lado: o personagem-título do livro “era uma londrina moderninha: exótica, sofisticada e estapafúrdia”. Além disso, a jovem senhora perguntara ao escritor se os índios brasileiros sempre andavam nus, mesmo nas cidades; ao que ele respondeu que “no Brasil era comum os próprios civilizados andarem nus – os pobres por falta de roupa, os ricos por excesso de calor”. E concluiu: “A inglesinha fez uns olhos enormes e ficou absolutamente deslumbrada”. Ao contrário do que acontece na famosíssima crônica “O homem nu”, em que o personagem entra em pânico ao ficar sem roupas fora de casa, o episódio da inglesa tenta captar a reação de uma estrangeira atraída pela hipótese de uma civilização formada por pessoas candidamente nuas. E é esse movimento pendular entre descobrir e encobrir que caracteriza as crônicas de viagem de Fernando Sabino, e não apenas de suas idas a Londres. Esse movimento equivale à oscilação entre a criança e o adulto, que também marca uma parte considerável das suas memórias, e até mesmo o epitáfio da sua escolha: “Aqui jaz Fernando Sabino. Nasceu homem, morreu menino”.

Ao Reino Unido, porém, Fernando Sabino chegara como o escritor consagrado de O encontro marcado (1956), em busca de tempo e de recursos materiais que permitissem dar continuidade a sua obra e até mesmo projetá-lo fora do Brasil. “Fair enough”, diriam os circunspectos britânicos – nada mais justo para o romancista que reivindicava a sua maturidade. O novo romance só surgiria mais de 30 anos depois, porém em 1967 o escritor obtivera ao menos a publicação em inglês de Time to meet, graças ao entusiasmo do divertido editor e amigo Ernst Hecht. No ano seguinte, a tradução ganharia o mercado norte-americano em formato pocket book, sendo desde então o seu único título naquela língua. Enquanto matutava outro grande romance, escrevia crônicas em quantidade industrial. Num trecho de “Em todos os tempos”, por exemplo, Fernando Sabino ensinou como pronunciar algumas palavras em inglês: comfortable era o que se entendia quando o indivíduo falava rapidamente “campo de futebol”; se precisasse adoçar o chá com sugar, bastaria dizer “chega”. Finalmente, Marble Arch, um dos pontos centrais da cidade, seria entendido caso se falasse "uma bolacha". Imagino o escritor a se divertir com esses cômicos disparates que produzia a título de literatura; assim como também o imagino divertindo-se com mais um dos seus “encargos oficiais”: trazer ao Festival Internacional de Cinema, em 1965, entre outras personalidades, as garotas que apareciam nos filmes de James Bond.

Mas o menino era cada vez mais adulto. Envelhecia em Londres e confessava na carta a um amigo: “Hoje ia passando pela Oxford Street todo pimpão a caminho da estação de Marble Arch, dei com minha cara meio de lado numa vitrine – era um senhor quarentão, com nariz fino e olhinho vivo, fiquei impressionado”. A reflexão sobre o tempo é também sobre o seu destino literário, quando se confrontava com o peso de realizar algo “grandioso, formidável, genial”.

Londres desdobrava-se sobre o escritor e começava a refletir não o menino, mas o adulto no espelho.

Felipe Fortuna

Enviado pelo próprio autor

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