Reformas

Fui arrancada do bem-bom do sono pelo blim-blom da campainha! Com os olhos enevoados olho o relógio: 6:45 hs da manhã.

Envolta em brumas repletas de carneirinhos, faço um esforço super-humano, visto o roupão e vou ver quem é.

Do outro lado da porta avisto o pedreiro e o pintor . Meus pêlos se eriçam de pavor! Me lembro da reforma que estou fazendo e meu humor vai parar na ponta do dedão do pé.

Ai meu Deus, por que essa classe subalterna tem a mania de madrugar? Por que insistem em chamar as mulheres de madame? Por que olham com um olharzinho de deboche e desprezo para quem levanta após o meio-dia? Inveja! Só pode ser inveja! E luta de classes também!

Afinal de contas eu passo as noites e madrugadas escrevendo, lendo, trabalhando, oras! E, durante o dia, ataco de administradora, contadora, arrumadeira, lavadeira, faxineira, compradora, 'boy', economista, socióloga, pedagoga etc., sem remuneração. Tenho dois filhos e não tenho empregada, oras! Nada dessa "mamata" de chegar em casa e ter quem faça comidinhas para mim! Marmitas prontas? Ahhhh, sonho dos deuses!

Meus dias são cansativos e canhestros e eles ainda se atrevem a me pensar "madama"!

Arrrrrrrrrrghhhhhhh!

Armo um sorriso entre o contrafeito, simpático e culpado e dou bom dia aos "penetras". Certo, certo! Penetras a meu soldo, concordo, mas nem por isso menos penetras!

Eles olham para mim e entreolham-se com sorrisinhos disfarçados, como se dizendo: "a orgia noturna deve ter sido boa..." — e eu, pobre de mim, que há dois meses ando em jejum sexual absoluto, pensando até em procurar uma abadia onde me sagrem monja, me aceitem e aos meus dois rebentos, sinto-me como uma loba da estepe, meus dentes internos arreganham-se, quase babo e penso: "é hoje!"

O pintor começa a preparar-se: é alérgico, o cidadão. Consome baldes de leite entre uma pincelada e outra e sofre... Seu olhar, por detrás da máscara protetora é de Cocker Spaniel. Tenta me comover. Mas eu sou dura, José! Logo imagino que ele vai tentar reestruturar o orçamento feito previamente, em função de sua alergia e acerto!... Putz!

O pedreiro é mais simpático e acessível mas, depois que percebo que a cada dia começa a chegar mais perfumado e até está usando a dentadura, desconfio! Toda cautela é pouca para uma mulher sozinha!

Comento casual e maliciosamente: — "Ummm, seu José, o senhor está a cada dia mais perfumado, hein? Vai à alguma festa?" E ele enrubesce e gagueja... Ai, ai, ai — penso: — "Não é que eu tinha razão?" E arrasada de tanto sono, peço licença e vou tratar de dormir mais um pouco, de porta trancada. — "Qualquer coisa batam na porta que vou escrever mais um texto" — minto.

Eles concordam e vou dormir mais umas horinhas, se nenhum imprevisto acontecer, se nenhum cano furar, se o azulejo não quebrar, se o epóxi não endurecer, enfim... se tudo correr de vento em popa...

Entro em meu quarto escurinho, deito-me, fecho os olhos e sonho.... Sonho com o dia em que esta maldita reforma terminar e eu possa enfim ter o repouso que mereço e gosto sozinha! Absolutamente feliz e SOZINHA!!!

Eliane Stoducto

« Voltar