A GUERRA DE FORMIGAS

Um dia ao ler uma crônica de Ferreira Gullar deparei-me então com uma guerra de formigas. Dizia ele que um doido contara-lhe como fora a batalha sangrenta, indócil e irascível das de cabeças vermelhas contra as de cabeças negras. O doido, numa narrativa peculiar, metafórica e fabulosa, bem ao estilo de Esopo, deslumbrou e fascinou o hoje cronista e poeta que vivia debruçado na venda do pai em busca de nuances da vida cotidiana para mais tarde ele próprio degustar-se em suas histórias e poemas contados.
Eu não vivia debruçado na venda de meu pai, ele não tinha venda. Mas o vento que me esbofeteava o rosto, as folhas que caíam e as lagartixas que me diziam sim o tempo todo, me faziam pensar, ainda menino, no estado das coisas. Também menino, colocava formigas para brigar, sempre uma acabava arrancando a cabeça da outra e, já menino, não entendia o porquê de tanta violência incitada por mim próprio. Então, ainda menino, observava os adultos e, por vezes, via um tio brigar com uma tia, ele trazia a expressão louca na face. Todos o temiam, eu não. Não sei como, mas sabia que dentro dele havia um pulsar angustiado e saturado da vida em si. Ele brigava com a tia para satisfazer a angústia e saturação que realmente nos são impostas.
Descobri em Shakespeare que o ser humano só serve para viver. Cada qual em seu cada qual. Shylock, o agiota judeu, avisou a Antonio, o mercador devedor. Não nego que depois de algumas leituras, de alguns autores, tornei-me descrente e triste. Como diria um compositor, “assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade”. E mesmo insone, acalentando a noite e pensando nos amores que tive e tenho, não consigo deixar de ser ser humano. Imagino o que levaria a considerar uma loucura. Acho que louco é o humano que é paradoxal e que paradoxalmente não aceita mudanças.
Lá pelo início dos oitenta, também conheci um doido. Ele não me contou história, apenas me deu uma injeção de glicose. Disse-me que tinha uma letra bonita, e era verdade, depois me pediu um esquadro (eu era estudante de desenho técnico). Ao questionar, ele me respondeu e só aí soube que era lunático. “É para medir a lua, saber onde pousar, tô construindo um foguete para fugir desse lugar de doido”. Depois me perguntou se eu era certo.
Ninguém sabe que é sozinho. E não quer saber. Só sabe que tem alguém para controlar, opinar e não respeitar o que esse alguém pensa ou acha dele. Desse outro que quer o controlar. No entanto quer saber o que se acha de outro qualquer certamente. Talvez surja uma nova espécie de santo, segundo Alberto Caeiro. Deus vai perguntar isso algum dia. E mais: vocês não querem ser iguais? Provavelmente haverá um uníssono sim. Como o da lagartixa. E aí todos correrão por entre as pedras, como as lagartixas.
Então “Que morte tem a morte, que vida tem a vida?” Responderíamos todos: mas que pergunta desse rapaz! Deve estar insatisfeito ou infeliz com alguma coisa. Como estar satisfeito com diferenças, ou indiferenças, gritantes. Ou como estar feliz com o amor longe e distante? Só mesmo Penélope para ainda amar Odisseu no meio de tantos pretendentes e do mar revolto que o levava cada vez mais para longe.
  Mas o amor não é a minha seara, tenho que ficar atento no cimo do outeiro observando a guerra das formigas.

Carlos Vilarinho

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