O LIQUIDIFICADOR E OS MORANGOS

A luz apagou e demorou a voltar na cidade grande. Faltou energia elétrica por cerca de doze horas aproximadamente por causa de uma tempestade que derrubou um poste anônimo e distante, no linhão que serve a região,deixando a população às escuras. Um liquidificador parou antes de alguns morangos virarem suco.
Procurou-se velas nos armários, lanternas poeirentas esquecidas nas gavetas e o o velho fósforo já preterido pelos acendedores elétricos. Sem televisão, todo mundo reuniu-se na sala ou no pátio da casa ou apartamento, em volta de uma vela acesa, como faziam as famílias de seus ancestrais. Olharam-se na penumbra como há muito não se olhavam por força da pressa urbana e começaram a contar seus planos, causos e estórias de visagem. Os vizinhos apareceram, se cumprimentaram e se falaram várias palavras, sem a pressa do "ôi" usual da entrada ou saída do elevador. Pensavam até que um ou outro estava viajando pois "nunca mais se viram". Trocaram as salas de áudio, os livros, os telefones,a televisão e a internet por um bom papo na frente da casa. Falaram das crianças na escola, das comidas dos restaurantes, da viagem das últimas férias, dos simpósios, dos congressos, de um parente distante, de quem casou, de quem separou, de quem morreu, etc. Sobretudo falaram. Trocaram o aparato cibernético de dentro das casas que fazem as pessoas ficarem silenciosas e usarem apenas o intelecto, pela simples conversa na "última flor do Lácio, inculta e bela" tão cultuada por Camões, Machado de Assis ou Fernando Pessoa.
Olharam o céu. Descobriram algumas estrelas acanhadas entre os edifícios escuros. Cruzeiro do Sul ? Sete estrelas? Vênus? Marte? Não sabem mais o nome correto da constelação ou estrela, como os velhos navegadores sabiam. Descobriram a lua brilhando pela metade. Há tempos não viam a lua. Crescente? minguante? nunca mais usaram estes termos tão constantes nos sonetos dos antigos poetas.
Nas ruas, sem semáforos, pouco a pouco os veículos foram espantados para suas garagens. As ruas ficaram quase desertas. Dava até para atravessar sem pressa a avenida principal de trânsito louco. Fez-se silêncio.
Sem barulho, escutou-se um pássaro noturno cantando. Coruja? Saracura? o homem urbano não sabe mais como seu ancestral camponês sabia.
Quem sabe o criador desligou um pouco o liquidificador em que nos metemos, para nos lembrar que nos fez morangos.

José Jaime Brasil Xavier

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