SEM NOTÍCIAS DE DEUS

“Pareço a mim mesmo uma pessoa
totalmente diferente. Ontem pensei comigo:
ou você era louco antes ou tornou-se
agora”
(Italienische Reise, de Goethe)

A viagem, em um ônibus antigo, quase vazio. O céu azul celeste espalha uma claridade ofuscante. Vou em direção ao rio São Francisco, o velho Chico, nascido na mineira serra da Canastra e caminhando para o mar por vários estados nordestinos, com a máquina fotográfica em punho e o caderno de anotações. Não consigo ler Viagem à Itália, de Goethe, impressionado com a paisagem agreste. Venho de uma região rica de goiabas, cocos, mangas, bananas, cajus, pinhas e jacas, e atravesso a caatinga brava: vegetação rasteira, onde sobressaem a jurema com seu caule escuro, ouriçados mandacarus com seus cactos de frutos espinhosos e flores claras que se abrem à noite, e, entrelaçada como se buscassem proteção, baraúnas, umburanas, umbuzeiros e carnaubeiras. Uma terra abandonada por Deus, palco de furiosos filmes de jagunços, de Corisco e Dadá, da cabeça cortada do herói Lampião, dos fiéis de Padre Cícero, do comovente Vidas Secas de Graciliano Ramos. A seca come tudo. Não há esperança de chuva. Paramos em cidadezinhas asfixiantes com seus postos de gasolina, bares-restaurantes, açougues sujos, igrejas evangélicas e cabarés sórdidos. Orocó, Serra Talhada, Caruaru. A cada parada o meu coração salta, escondo o dinheiro, pois estou num ponto de quadrilhas de roubos de cargas de caminhões e de automóveis e assaltos à passageiros de ônibus. O transporte ziguezagueia desviando dos buracos do asfalto. No campo, nenhuma vaca, nenhum pássaro, um vez ou outra um cachorro magro mostrando as costelas. As três da tarde o motorista comunica que o ônibus está com problemas, pifou. “Teremos de esperar ajuda. Vai tardar umas três horas”, diz resignado. Desço com o meu Goethe debaixo do braço e observo curioso a paisagem: um mundo sem árvores ou água. Moscas tomam conta do meu corpo suado e um cheiro nauseabundo me leva a imaginar cadáveres putrefatos. Numa barraca de beira de estrada, um cartaz anuncia: “Servimos caldo de mocotó”. Vou lá, passando os olhos no balcão por bolinhos de milho, lingüiças, pastéis, mandioca frita - tudo com um aspecto de muitos dias. Peço uma latinha de guaraná. “Não está muito gelada”, diz o velho sem dentes, o rosto generoso cortado por rugas  e cabelos curtos à escovinha. Um garotinho moreno e bonito, de uns sete anos, descalço, sem camisa, sorri para mim timidamente. Chamo-o para o meu banco, ofereço um refrigerante, pergunto o seu nome. “Sebastião. Como o santo de Deus”, responde contente. “Onde você mora? “. “Lá no fundo do caminho”, aponta. Avisto a casa de pau-a-pique. O cenário é desolador. Vou com Sebastião à sua humilde morada, onde vive com sua mãe e mais cinco irmãos. Não tem pai. Nunca teve. A mãe está no lixão à 3 km, como faz todos os dias, em busca de alimento e objetos úteis. Os irmãos estão no posto de gasolina mais adiante, passam lá todo o dia, à espreita da sobra de comida dos fregueses de uma churrascaria. Ele cuida da casa e de uns poucos pés de mandioca. Todos os irmãos são homens e o mais velho tem 14 anos. A única irmã, Maria Bethânia, foi encontrada assassinada há um ano na mesma montanha de lixo onde a mãe faz a cata diária para a sobrevivência. Na parede, uma gravura da Virgem Maria, faltando justamente a parte da imagem do Menino Jesus. Passo com Sebastião horas de ternura e angústia. Não consigo fotografá-lo, seria como roubar a alma de um índio. Ele é um menino alegre e fala de como fica feliz com as noites de ventania, trovoadas e relâmpagos. Penso no meu Brasil e nas suas crianças de rua, na exploração sexual de menores e na violência. Deixo com Sebastião algumas roupas, algum dinheiro, frutas, um caderno e lápis de cor. Ele me abraça, pedindo: “Me leve com o senhor”. Nada respondo, desenhando na terra árida um anjo, ele copia-me e rabisca o mesmo anjo, menor, de mãos dadas com o outro. O ônibus buzina anunciando a partida. Sigo o meu caminho. Sebastião corre pela rodovia até sua imagem minúscula perder-se no infinito. Logo depois, atravessando o lixão, procuro uma figura feminina que possa ser a mãe daquela criança, e o que vejo são inúmeros seres esquálidos, inumanos, metidos até a cintura nos restos de uma civilização infame e indiferente.

Antonio Júnior

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