FLORENÇA

Queria conhecer Florença com olhos de entender. Era véspera de sábado. Nada é mais contagiante que a alegria de uma sexta-feira, como nada é mais melancólico que um fim de domingo. As cidades, como os homens, têm perfil, caráter e sentimentos. Algumas são formais, sombrias, "performáticas" e irritantemente adultas; outras mostram-se irreverentes, lascivas e sedutoramente fúteis.

No bar do Hotel Aprille, após provar "crostini", "calzoni" e uma torta gelada (semi-fredo), tive um súbito sonho. Vi chegar um jovem circunspecto, de malares salientes e mandíbulas bem recortadas, acompanhado de um homem de densas barbas e olhar místico. Outros e outros chegaram, parecendo dar continuidade a uma conversa iniciada na praça. Soube chamarem-se Machiavelli e Michelangelo. Acordei-me e não mais os vi. Era sonho mesmo, até porque não eram contemporâneos. Tinham-se ido os homens de IDÉIAS.

Florença não é uma maternidade exaurida e não cabe na Terra: é o Universo. Não é formal, nem irreverente. É LUZ... De repente, entendi as disputas entre guelfos e gibelinos, as lutas contra Pisa, o ódio dos Médici e a arte como geradora do êxtase.

Segui as margens do Arno e cheguei ao Palácio Pitti, projeto de Brunesleschi. Tudo emudeceu-me, da "Madonna della segiola", de Rafael, à "Virgem com o menino", de Murilo. No Palácio Vecchio e na Piazza del Signoria, as obras de Vasari (discípulo de Michellangelo) o "Perseu", de Cellini, as náiades e os sátiros de bronze e a beleza arquitetônica calaram-me com o silêncio da humildade. Na Piazza Michellangelo, a cópia de "Davi" deixou-me silente e reverente. A Sinagoga, de Treves, Falcini e Michelli, combina o exótico mourisco com a linha tradicional da arquitetura cristã. A Galeria Uffizzi é mais um caleidoscópio de cores e tons: Botticelli, Caravaggio, Rafael e Giotto, com o "Nascimento de Vênus", "Baco", "Auto retrato" e "A virgem no trono", deram-me a medida exata da capacidade criativa do homem. No Pallazzo del Podestá, o Bargello, o pátio, o "Baco", de Michellangelo, o "Mercúrio", de Glanbologna, o busto de Cosme I, de Cellini, e o impacto aromático levaram-me a conhecer o Belo no seu sentido mais amplo.

Perguntei-me então: quem criou Florença? Certamente, ali, o Supremo estabeleceu o seu ateliê.

Adolpho Konder Homem de Carvalho

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