Viajando por Lisboa

Viajo por Lisboa sem o menor planejamento turístico. Não me importa o valor que se dá ao belo ou ao disforme. O superlativo também se esgarça em rotina quando é lambido pelos nossos olhos. E "lamber" é tão pouco para os doutos classificadores da taxonomia. Que palavra elegante esta! Sua fonética sugere a existência de alguém capaz de limitar a compreensão humana e classificá-la, defini-la, enfim, sistematizá-la numa completude de início, meio e fim. Tudo cientificamente comprovado. Que ironia! Se eu perguntar a um leigo o que há de mais belo no mundo, seguramente ele irá responder que não sabe. Se passar a pergunta a um especialista, este, inseguramente (quem detém muito conhecimento, torna-se inseguro) deverá dar-me a mesma resposta, porque depois de haver especulado e comparado os fatos, o resultado irá equivaler à concepção do ignorante. Quem saberá definir o que é, ou deixa de ser belo?

Penso que o belo é essa magia que a gente traz nos olhos, é essa capacidade de abarcar vastamente os horizontes e depois guardar as imagens no coração como um retrato vivo, único e individual. Nada útil que possa ser repartido, apenas um retrato para recordar sozinho. Não está vinculado a conceitos turísticos, nem é algo do qual tenham me prevenido antes. O belo pode ser o imprevisto de uma chuva fina na saída do aeroporto, ou o olhar assustado da criança que é igual em qualquer parte do mundo. Na verdade o que me seduz mesmo é esse passar de pessoas desconhecidas que são tão parecidas comigo e que vão e voltam sem me notarem porque também não sabem que viemos do mesmo lugar e que temos a mesma origem e a mesma selvageria anterior às nossas vidas civilizadas.

Fotografo os rostos e corpos e vo-los organizando num quadro imaginário. Sou uma daquelas pessoas que querem a beleza a todo custo, de um riso ou de um rio, não sei explicar. De qualquer modo, vi também muitas pessoas procurando isso. Com câmaras ou olhos nus. Mas arrisco dizer, numa opinião de leigo, que o ser humano ainda é a mais bela paisagem do mundo. É ele o símbolo das idéias, dos conceitos, das incertezas... é ele o resultado do passado e a esperança do futuro. Nunca é igual. Nunca serão.

Mulheres com os rostos cobertos. Mulheres lindas com véus insustentáveis. Peles negras de belas senhoras em contrastes com a palidez de doces meninas. Esse perder-se de identidade quase voluntário, essa aceitação do outro que vai escrevendo uma nova época. E isso está além da geografia ou história.

Mas agora não é o momento propício para falar desse assunto. Não é hora para lembrar sequer que existo. Lembrar, sim, da frase de Fernando Pessoa (Alberto Caieiro) que li em alguma parede ou banco de parque: "É essa a única missão no mundo,/ Essa – existir claramente,/ E saber fazê-lo sem pensar nisso." E assim existo, sem indagar muito. Em Lisboa existo, integralmente, como nunca existi. As experiências podem ser reais ou irreais, a cidade está cheia de ruas que dão passagens para outros séculos. Castelos, mosteiros, palácios... o despertar dos azulejos, a ressurreição das estátuas, passos a cavalo... a primeira estátua que se levanta é Camões, depois, Ulisses que passa correndo diante de nós, vem do mar trazendo liras e barcos. Vasco da Gama, Pero Vaz de Caminha, Pedro Álvarez Cabral sonhando com uma ilha desconhecida. Por essas portas mágicas pode-se ver mais que isso. Conquistas e conquistadores. Poetas e marinheiros. Há sentimentos antigos dentro de nós que não perdem sua força. Vez por outra os sussurros dos heróis são interrompidos pela barra escura que vem arregaçando o céu e cobrindo o azul. A noite canta fados para mim. Me arranca uma lágrima nessa relação de velhos conhecidos. Ofereço um sorriso como o melhor de mim enquanto o lilás do céu vai sendo esmigalhado pelos meus olhos.

Lucilene Machado

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