DELICADO ABISMO
San Míquel (Espanha)

        “É sobretudo quando tudo é falso que se ama o verdadeiro.”
Diderot

A vida é sempre uma continuidade, sempre. Não existe um destino final. Sempre é um seguir adiante. Simplesmente a aventura do desconhecido, simplesmente a vida, sem meta, movendo-se de mãos dadas com o aprendizado e a sabedoria. Cigano irrecuperável, vou no trajeto sem preocupar-me com o destino derradeiro. Agora vejo-me numa montanha. Estou só; estou só com meus pensamentos, com minhas sensações psicodélicas. Só com uma imagem, uma imagem após a outra, de montanhas que estão Deus sabe onde. Algumas se vestem de névoas, outras são azuladas. Todo o bosque, dentro delas, relata dócil um conto de fadas. A harmonia reina por toda parte; e as pedras, o infinito do céu puro, o coração e as árvores de jade. A mulher madura caminha no imaginário. Chama-se Pilar Vergès. Seus cabelos são grisalhos, não está maquiada. Parece uma adolescente e ao mesmo tempo uma alma centenária. O rosto não mostra os estragos do processo da morte, tampouco as marcas da ruína de uma carne em situação extrema. A voz leve, inquieta e vibrante, voz que é como uma música, e ao mesmo tempo uma voz de todos os dias, uma voz sem recitação, sem pose, cortada de ternura, de hesitações generosas. A mulher madura caminha no imaginário jardim de narcisos amarelos, pelos jacintos azulados, pelos cravos cor de sangue, pelas incontáveis gardênias e camélias que faz do recanto na montanha, perfume e poesia. O poeta diz à feiticeira, sim, vejo o jardim cheio de flores, a cada sentimento novas flores, agora flores brancas, de aroma arrebatador: jasmins estrelados e lírios. São dias felizes, e jamais os esquecerei. Como poderia esquecê-los? A mulher de olhos de luz não quer saber de absolvições, diversões, consolos, quer experimentar a solidão e a expiação até a vertigem, até o aniquilamento de tudo aquilo que foi ou poderia ter sido. Ela habita a grande casa de pedra, na beira do abismo, no alto da delicada montanha de San Míquel. A minha tendência ao intimismo, a necessidade de me analisar, de penetrar no enigma de minha identidade, de se me aprofundar, me levou a ela, à Senhora da Montanha, na Alta Garrotxa catalã. Uma interminável ladeira através do bosque misterioso e gelado, sem sol, à noite cintilante, leva ao santuário. Quatro horas caminhando no mais absoluto silêncio. A energia do silêncio me possui. Estou possuído, já não existo: existe o silêncio. Neste momento, enquanto o silêncio penetra em mim, posso entender que os tempos mudam, os amores transformam-se em desamores e em novos amores, o mundo continua mudando, porém a experiência do silêncio, o gozo que produz, segue igual para sempre. Das alturas, de onde se admira um interminável vale que lembra o cenário de “O Senhor dos Anéis”, o reduto, a capela, árvores robustas e uma clorofila intensa vigia a eternidade. Transparência e beleza de uma natureza e de um paraíso perdidos, ainda impregnado de uma candura maternal e sagrado. O presépio não exige soluções para os enigmas, nem vive de carne humana. Tudo são suavidade e paz, e só tenho dentro de mim o silêncio, o silêncio como horizonte. A Via Láctea percorre, como uma prosaica veia, o mundo das estrelas. Escrevo, leio, fotografo, contemplo, medito em um território escassamente povoado:

Dentro das conspirações da alma, nas
montanhas
das luas,
vive uma dama prateada,

desnuda de rancores
olhos permanentemente abertos, um véu
azulado, montanhas de silêncio
que dão ânimo,

com docilidade
acaricia pássaros e árvores constantes,
sem tocá-los

e também você, leitor invisível, nesse sonho próprio,
saltando no ar de palavras nunca escritas, deixando um
cheiro de mandrágoras,
hortelãs nas axilas

às vezes, nada é realmente real
ou tudo é real-terráqueo,
e sonho e intensidade e vida
conectam-se, e a dama prateada sorri.

Matriarca do misterioso, do inquietante: a noite nos abraça. Compreendo que na existência não existe ninguém que seja superior ou que seja inferior. A gota de orvalho e uma onda gigantesca são absolutamente iguais. Só o homem quer ser mais que outros, quer conquistar a natureza. Toda a estupidez surge desta luta inglória. Na montanha não há ruído, movimento, agitação de multidões, violência, angústia, o preço da modernidade. Não há políticos, esses sádicos que representam todas as coisas as quais é preciso prevenir-se: a vulgaridade, a ausência de cultura, a brutalidade, a corrupção e a insensibilidade. Qualquer um que seja astuto e malicioso, pode se tornar um líder ou um político de êxito. Tudo o que necessita é hipocrisia, tudo o que necessita é uma máscara elaborada por um marqueteiro. Seus sorisos são falsos, as expressões estudadas, os apertos de mão sem paixão. O político,

- como o aristocrata, como todos que tem um certo poder -, nasceu para humilhar sua gente. Na montanha, enquanto escrevo sem muito pensar, não há noitadas urbanas em que as pessoas são esfoladas vidas, devoram-se entre si, numa linguagem chula na qual a maledicência impera soberana. Não há as toxinas da desconfiança, o fel da informação perturbando o espírito. Todos os presentes, uns vinte jovens e a galante Senhora da Montanha, tem interesses mais profundos. Discutem certos assuntos essenciais os quais outros nem ousam pensar. Um círculo de cura. Em suma, não são mundanos. Os quatro elementos são invocados: fogo, terra, vento e água. A lareira estala faíscas da fogueira ardente, brasas queimam alecrim, queimam alfazema, queimam tomilho, queimam arruda, queimam as desilusões. O Homem de Fogo, a Gente do Tambor, a Mulher das Ervas, a Mulher da Água, cantam seduzindo o espírito das plantas. A lua nova, em conjunção com Vênus, a Estrela da Manhã, ilumina as montanhas apreciadas através da porta medieval entreaberta. Lavado por água de rosas, suspiro versos:

As montanhas são palavras, falam,
falam,
falam em silêncio

falam emoções, emoções esquecidas
falam através de curtas e definitivas frases:
O amor é uma águia que voa alto, muito alto.
É uma delas.

Irradia um roble entre elas, numa clareira
entre o bosque, único,
está assim, fincado na terra dura
cúmplice do silêncio durante séculos,
constante em sua verdade

Todas as nossas esperanças
vivem nele
as minhas, as suas
e as dos outros.
é um segredo da nobre árvore
que sabemos, não sabemos.

e vou: as montanhas
são um caminho interior.

O amor ao perigo, o costume da energia e da coragem, assim sou, meu aventureiro e fiel leitor. Não perguntou Shakespeare, em “Hamlet”: “Por que sempre essas sombras sobre vossa fronte?”. Escrevo o que me é permitido, não o sei fazer melhor. Posso dizer que no exterior enxergo árvores, muitas árvores, e sombras e cactos e framboesas e sombras e cactos e roseiras. Figueiras, como a de Hilda Hilst, que me concedeu sete desejos, entre eles viver na Espanha, e figueiras, e palavras que são figueiras, e intenções que são figueiras, e uma rede, um poço, cães e o gato Fajeta (um diminutivo de semente) transformando-se em gatos antigos sem nome. A imagem da Virgem Maria na entrada do caminho esquerdo, um senhor dos ventos, estradas de chão úmidas e rústicas que se cruzam. Acima, horas antes, talvez depois, Lau, um adolescente magro, branco e andrógino como um personagem mitológico, da corte de Eros, segue pedras pintadas, o sol muito próximo, a ermita com o Arcanjo Miguel sacrificando valente o Senhor das Trevas, e mais adiante o Prado de la Cruz. Dentro da casa, a cerimônia com elementos tradicionais zambuyendoses e de outras variadas doutrinas místicas, eclética, porém de uma tradução concreta, pessoal, heterodoxa. Tomas, o Homem do Fogo, é o centro de referência, o espírito que dirige a celebração. Assim como o ator cria personagens deliciosos, o místico trabalha sobre seu próprio ser: é o autêntico criador, o verdadeiro artista, porque faz de si mesmo uma obra-prima. O legitimado xamã Eduard Ferrer, cálido e autêntico, sorriso de simpatia e confiança, tomado por um mestre de outra dimensão, de energia feminina indígena, numa integração espantosa, fuma o tabaco de sávia, floripôndio, mandrágora e do pré-histórico terro; bebe o ayahuasca dos incas, um líquido amargo e esverdeado, emotivo e suave, de um cacto da alta selva amazônica peruana dos Andes, de nome científico Bannisteria Caapi, cozido durante dezesseis horas. Recebendo e oferecendo a medicina que expressa no corpo sentimentos escondidos, abre canais de comunicação com o espírito, que dá a possibilidade da cura interior observando nossa própria essência. Limpa a aura com sopros de água de flores, trazendo o amor, a poesia de cada um. Fecha e abre os olhos e aperta os lábios e fecha e abre os olhos e cospe o líquido na minha cara, dizendo: “Has amado tanto, te lo has jugado todo y de repente, un día, el amor se ha ido. Este sufrimiento no es para que te sientas triste, recuerda. Es para hacerte más consciente, elevado y profundo”. Me surpreendo com minha reação de insólita intensidade. Ao chegar ao clímax, solto um suspiro profundo e deixo-me cair ao lado da fogueira, sentindo o calor por dentro e por fora. Os mantras hindus, os arquétipos, os cânticos indígenas, catalães, do Santo Daime e de umbanda são usados para que os seres invisíveis encarnem na energia vital dos participantes. O Caminho Vermelho. O Cedro e o Roble. As delicadas beladona e mandrágora, que ingeridas descontroladamente podem levar a loucura ou ao suicídio. Os espelhos, os desejos costurados em pedaços de tecidos por fios de lã carmim, a maraca. Onze horas depois, as oito da manhã do domingo gélido e ensolarado, se finaliza o paganismo com iluminação de telas de Gustave Moreau. Todos caminham nus pelo bosque, para uma cabana erguida por troncos flexíveis e cobertores: o Inipe, um antigo ritual de purificação dos indígenas mexicanos e norte-americanos, a conexão radical com a mãe-terra. Um buraco no centro do abrigo é cheio com pedras incandescentes, salpicadas por água e ervas, numa sauna sufocante. Desmaio por duas vezes, vejo tudo azul, águias cortam a escuridão. Dani, outro xamã, um anjo de formosura lírica e pele leitosa, cheirando a baunilha, canta e canta e canta sons. Procura estabelecer contato não verbal de intuição, um intercâmbio melódico de pensamentos e sentimentos. A Senhora das Montanhas é a rainha, a madrinha, a Luz. A todos observa, socorre, conforta. Em seus olhos, uma curiosa distância, a calma impessoal de um animal ou de um menino. Ainda pelados, sujos da terra negra, esfomeados, sonolentos, tomamos um banho frio de água de chuva. Visto toda a parafernália para defender-me do inverno que me descontrola emocionalmente, tomo um chocolate fervendo e procuro um lugar discreto para escrever com urgência, meus caros leitores, sobre o altar da montanha de San Míquel, como já disse, na Alta Garrotxa, na Catalunha, depois dos encantadores “pueblos” Besalú, Tortellá, Sales de Llierca e Coma-de-Roure. Escrevo em busca do leitor cúmplice, aquele que dá muito mais importância aos ofícios do que aos homens, aos conhecimentos precisos que adquiriram no contato com a matéria ou com a natureza, do que à sua ideologia. Basta descobrir num ser um autêntico elemento, e eis a atração. Agradar-se tanto com uma baiana vestida com rendas, quanto um pintor usando a tinta adequada a cada movimento artístico. Sento na beira do penhasco, no delicado abismo da montanha, só com meus pensamentos, com minhas sensações psicodélicas. Só com uma imagem, uma imagem após a outra, de montanhas. Montanhas vestidas de névoas, outras são azuladas.

Antonio Júnior
(texto e fotos)

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