TREM PARA SOLEDADE

Quando cheguei à estação, lembrei-me de uma foto de 1922 que vi num estande de uma Bienal do Livro do Rio de Janeiro, que mostrava a maria-fumaça a pleno vapor na linha férrea próxima da qual vivi por mais de trinta anos, mas por onde só vi passar trem elétrico carregando trabalhadores sofridos.

Pela primeira vez, via uma maria-fumaça funcional e já estávamos em pleno século XXI. É um trecho reconstituído da ferrovia que liga turisticamente São Lourenço a Soledade, no Sul de Minas Gerais. A máquina de número 331 parada na estação fez-me lembrar imediatamente do amor que os artistas mineiros têm por esse tipo de transporte. A estação arcaica é parte indispensável do conjunto, fazendo com que nós nos sintamos atemporais e extemporâneos, ao mesmo tempo.

A viagem de dez quilômetros demora cerca de uma hora, porque o trem vai muito devagar, permitindo a contemplação detalhada de paisagens e pessoas. Já havia viajado em trens com banco de madeira, quando existia o “macaquinho”, que saía do Rio de Janeiro para Mangaratiba. Cheguei a viajar também em vagões semelhantes, quando tive a oportunidade de conhecer o trajeto entre Curitiba a Paranaguá pela serra. Mas, naquela hora, a visão da maria-fumaça e o fato de estar em São Lourenço levavam-me a um sentimento único, inigualável.

Conheci São Lourenço na década de sessenta, com menos de dez anos de idade. Meu pai fez a viagem comigo do Rio de Janeiro para São Lourenço em um trem de passageiros que existia na época. Quando cheguei àquela cidade, foi naquela estação que saltei. Isto certamente é parte da carga emocional que fazia tudo ali ser especial para mim.

O trem sai apitando várias vezes e deixando um rastro gasoso que não se dissipa antes da curva. Tudo range. Do lado de fora, o que mais emociona são as pessoas acenando para os passageiros em quase todo o percurso. Para nós, seres urbanos, acostumados à violência e à negação, esse é um gesto que não há como não servir de lição. As pessoas simples são as que mais valem.

A maria-fumaça puxa os vagões e passa ao largo de fazendas, de rodovias e do Rio Verde, que tem sua origem em algum lugar da Serra da Mantiqueira. Depois de mais ou menos uma hora, chegamos a Soledade, cidade minúscula, que vê um pouco de esperança naquele trem que chega duas vezes por dia à sua estação. Lá, de prontidão, já estão artesãos e vendedores de iguarias. O melhor curau do Brasil está ali. A sensação de estar perto de gente boa, que luta muito e que transparece um ar de satisfação com o pouco que tem, é um exemplo que pode ser visto como um sinônimo de má conduta para os industrias e comerciantes das grandes cidades, mas que, com um mínimo de lucidez, veremos que se trata de uma riqueza que se perdeu com o avanço do progresso.

O trem da tarde volta antes de escurecer. Alguns detalhes perdidos na ida são vistos na volta. Quem está no Parque das Águas de São Lourenço pode ouvir os sinos e o apito do trem chegando. É o fim da viagem que resume os melhores sentimentos que tive em toda minha vida.

Felipe Cerquize

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