Às Margens do Ganges

               Vindas de muito longe, ali estávamos em Benares, a cidade sagrada, às margens do rio Ganges, na Índia, aonde vêm milhares de peregrinos. E velhos hindus, quando sentem a aproximação da morte, sempre vestidos de branco. Diferentemente dos mortos comuns que eram cremados em piras ao longo das margens do rio e suas cinzas jogadas nas águas, os corpos dos idosos mortos, considerados santos, eram jogados no rio, onde inflavam e boiavam, até que desaparecessem devorados pelos peixes. Também ali se jogavam as crianças mortas na tenra infância.

               Tínhamos saído de ônibus do hotel, todos em jejum, antes que o sol nascesse, já que o passeio pelo rio tem que ser feito sem luz solar, conforme estabelece o ritual, sempre obedecido pelos turistas. Éramos duas brasileiras e duas argentinas, o grupinho do Mercosul, como diziam de nós, e mais um grupo de animados turistas espanhóis.

               E assim, na madrugada, descemos do ônibus, fizemos parte do trajeto a pé pelas estreitas ruelas enlameadas, todos bem juntos, rumo ao Ganges. Chovera muito na véspera, nos desviávamos das poças, vendo baratas e ratos se esgueirando entre as pobres habitações e as centenas de moradores de rua. Mendigos abriam alas para nós, entre eles os hansenianos com suas esgarçadas faixas sujas, enrolando partes do corpo semidestruídas pela doença. Ficava difícil dissociar piedade e nojo, mas me lembrava que se resignam graças à crença na reencarnação das almas, que evoluiriam espiritualmente pela pobreza e sofrimento, até chegar à perfeição, através de estágios gradualmente menos sofridos, na Terra. Racionalidade nenhuma, pensei. Talvez subterfúgio das classes dominantes para manter na pobreza os menos afortunados, algo assim como uma lavagem cerebral. Algumas vacas comiam o lixo das casas, outras já perambulavam pelas ruelas. Passou um caminhãozinho com uma longa vara. Cutucavam os que estavam deitados, imóveis, sendo levados os que não acordavam, certamente considerados mortos.

               Chegamos à embarcação, fomos presenteados com colares de flores por crianças que nada pediam, mas eram eloqüentes os olhares. Hoje, dói pensar que nada dei a elas.

               E assim, com nossos colares floridos, na semi-escuridão, fomos navegando, vendo cadáveres boiando, ouvindo o crepitar da lenha nas fogueiras crematórias, o desfilar das antigas e decadentes vivendas das margens... Um navegar fantasmagórico... Flashes se cruzavam no barco...

               Então comecei a me sentir estranha, a câmera travou, eu não mais sabia onde me encontrava... As velhas vivendas foram se transformando em palácios suntuosos, as águas se tornando límpidas, cortadas por belas e antigas embarcações. Nenhum cadáver boiava, nenhuma fogueira ardia, nenhum sinal de decadência, sujeira, doença e morte. O barco se esvaziara dos turistas. Outras pessoas em roupagens opulentas me rodeavam, cantando sua alegria de viver. Era prazeroso estar ali com aqueles hindus da mais alta casta social.

               O barco ancorou, desci, caminhei pelas ruelas enlameadas... Já não havia riqueza e alegria, e sim, multidão de párias, entre eles, os hansenianos... Me tornara um eles, com partes do corpo semi-destruídas pela doença envolvidas em trapos. Turistas retornavam do rio, disfarçavam o nojo, o mesmo grupo, mas eu não estava com eles... Tentava me reintegrar, sequer me olhavam. Eu pensava com as palavras da minha própria língua, mas a fala resultava noutra, só os pedintes e os doentes me entendendo. Por alguns dias convivi com eles, dividindo esmolas, dormindo em suas enxergas, sentindo mordidas de ratos, baratas me acordavam... Tentavam me ajudar, do jeito que sabiam e podiam. Uma madrugada, o caminhãozinho da vara passou, me cutucaram, não consegui me mover, me levaram entre os cadáveres. Sofri dores horríveis ao queimar na pira, até que...

               Estava outra vez no barco, o sol nascia, ali o mesmo grupinho mercosul e os turistas espanhóis. Nenhuma estranheza, nenhuma pergunta... Nada excepcional acontecera. Eu cochilara? Vi os cadáveres boiando, as fogueiras, os velhos casarões das margens... Estranhamente, no retorno, ao entrar no ônibus, me vi entre os hansenianos, me dando adeus e desaparecendo. Como interpretar? Eu teria revivido momentos do passado? Quem é que sabe? Mas, o que quer que tenha acontecido, senti na plenitude, entre leprosos, a compaixão que não humilha, a solidariedade em estado puro. E para isso eu tive que ir tão longe...

Maria Coquemala

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