O CORVO E O COMEÇO DE UMA ESTRADA

Onde o Rio Reno faz uma curva, em um monumento sobre a Floresta, a estátua de Germânia Observa o rochedo vazio da presença da ninfa Lorelay. O Reno não muito largo, mas navegável por navios, desliza no seu mistério até hoje indecifrável, deixando somente o marulhar de suas águas correr para a fenda do Céu de Odin, protegendo em suas entranhas o povo de Nibelung.

Eu estava hospedada perto dalí, em Francfurt, e fora passear com as amigas alemãs Betty, Traute e Ingrid. Não me cansava de olhar admirada a estátua de Germânia, alta, imperiosa, porque essa estátua em um medalhão dourado ornamentava um livro alemão de 5kg, que eu herdara de um avô. Nem eu mesma imaginava a emoção de se constatar que algo de criança existia, era verídico!

Voltamos aos nossos lares pela floresta, passeando no automóvel, pela margem do Reno.

Foi então que eu o ví! O corvo!

Chovera naqueles dias e o pássaro negro, sonho dos meus sonhos numa terra onde ele não existia, seguia empoleirado num monte de galhos e sarças, levado rio a baixo pela forte corrente, resto da tempestade.

Dei um grito: um corvo!

O alemão é discreto nos seus atos e não está acostumado a gritos – no mesmo instante Ingrid me repreendeu:

— Você assustou a Traute!
... Se fosse na Itália, meu grito teria sido aceito como perfeitamente natural, pela surpresa, mas na Alemanha me fez pedir desculpas à motorista... Era o primeiro corvo, e ele me indicava uma estrada onde. Outros de sua espécie, me esperavam...

***

E como os sonhos de criança podem ser realidades, eu resolvi realizar mais um. Eu sonhava sim, desde que pude dar acordo de mim, com um lugar na India, selvagem como as ilhas do Havaí que me fascinavam, e a Índia me seduzia, com seus templos, seus deuses e suas dançarinas cobertas de jóias e flores. Era tão forte

Essa imaginação que eu me perdia nas aulas do colégio, sonhando de olhos abertos. Não fosse a minha rápida compreensão de tudo que não se tratasse de números, eu teria feito o tempo escolar com dificuldade. Não demorou muito para o sonho se transformar em sofrimento.

A minha amiga Ingrid, desde o nosso primeiro encontro no colégio, apesar de materialista (e até), tinha um gênio maravilhoso e era a única a me aturar com a maluquice... fomos inseparáveis, no seu casamento, no seu único filho, até sua morte. Mortos minha mãe e meu pai, ficando herdeira, não deu outra...

Resolvi partir para a India...

Procurei Lesly, filha de italianos, mas que residia seis meses na Itália e seis meses no Brasil. Lesly me hospedou em seu apartamento em Verona, a caminho Para a Índia.

Mas quê Índia?

Lesly, guia turística, preparou um programa com passeios por Nova Delly, Bombaim, tipo turismo.

— Não, não, Lesly, não é isso que eu quero...

— Então, o que é que voce quer?

— Eu não sei...

— Olha aqui, vê esse livro de turismo e vê se acha alguma coisa...

Folheei o livro enquanto ela cozinhava (estávamos na cozinha, em Verona, norte da Italia e pátria dos pais de Lesly). Folheando o livro, dei com um nome: MADURAI. E como estávamos na Itália, dei um tremendo grito:

— É aqui, Lesly, é aqui que eu quero ir!

Madurai fica no sul da peninsula que é a India – bem no meiozinho – entre dois Oceanos.

A viagem foi feita através da Suiça, via Sri Lanka - que deu muito trabalho à Lesly, pois quase fiquei retida no Aeroporto do Sri Lanka: pois sendo eu brasileira, e o Sri Lanka comunista, naquela época não tinha relações diplomáticas com o Brasil.

No dia seguinte, após pedirmos o café da manhã, ao abrir a janela, oh! auem apareceu? Ou melhor, apareceram? Os corvos! Me apresentei e convidei-os a tomar café comigo na mesa. Foram muito educados e eu lhes apresentei pedaços de bolacha com geléia. Eram "boa boca", comiam de tudo, só Lesly foi tomar seu café sentada na cama:

— Não sei como você pode comer com esses bichos em cima da mesa!

Também ficavam sobre o aquecedor enquanto eu tomava banho de chuveiro na banheira. Loucos por novidades, conversavam comigo o tempo todo: - Oh! Ah!

O Sri Lanka é um país budista e calmo. Os gatos, os corvos, as baratas, um imenso elefante esperando não sei quem, num recuo de uma casa, solto, sem incomodar ninguém.

Os cachorros são de todo o mundo e todos os alimentam. Sempre digo aos bichos: - Querem ser felizes? Reencarnem no Sri Lanka!

Visitei os Viharas (Mosteiros budistas – Budismo Theravada) onde fui muito bem recebida, pois o Budismo é de converter: - Ide e Pregai! – e recebi a lição de que a árvore Bodhi, símbolo da Iluminação do Buda, nunca deve ficar no chão, mas sim, cercada por pequeno muro está sempre no alto. Os monges gentilíssimos, diferentes dos hindus com quem iria me encontrar...

Dali, num avião da Air India, aterrissamos em Tiruxirapali, no Sul da Índia. O avião encostou numa casinha que era o Aeroporto..

Saltei do avião, sob um vento forte e quente, caminhei sobre uma terra preta (que antes tinha descrito para Lesly que era assim) e ela na frente, virou-se para trás e perguntou:

— Como é que você sabia?

Lisley e eu levávamos mochilas de nylon, nem malas... mesmo assim fomos interrogadas separadamente e eles perguntavam:

— Onde estão as pedras do Brasil?

— Pedras? Que pedras?

O meu passaporte passou de mão em mão e foi fuçado 16 vezes!

Só pararam quando um deles meteu a mão na minha bolsa e deu com um rosário hindu (mala) – aí pediu desculpas e nos liberaram.

Passei 24hs em Tiruxirapali, subi duzentos degraus escavados num templo dentro de um rochedo e quase fomos mortas, porque eu ao ver num dos nichos que ladeiam a escadaria, a imagem de um Lingam (órgão sexual do deus Shiva) da altura de um homem, com um pano roxo enrolado na sua base e ladeado pelas duas shaktis Ida e Pingala (em forma de mulheres em tamanho natural) o mostrei para Lisley e ia começar a discorrer sobre o fato quando vi atrás dela hindús em atitude ameaçadora... eu disse:

— Não olhe para trás... finja que estamos falando outra coisa...

Estávamos no Tamil Nadu, a terrível região desértica da Índia. Não é costume os turistas irem lá. Os guias sabem que é perigoso.

Aluguei um carro Ambassador – resto da colonização inglesa, e através do deserto, alcancei Madurai.

O Deserto tem formações de pedra, como as que existem no Paraná, aqui, no Brasil. É um deserto como as caatingas do nosso Nordeste, não é de areia, como o do Saara. Depois de viajarmos 142 km, entramos em Madurai, onde há seis meses não chovia. O calor estava 53 graus e o vento levantava a poeira das ruas e calçadas. Mas foram 142 km sem serem vistos cadáveres de cachorros e outros animais na beira da estrada...Viva a Índia!

Era lá, sim... Entramos na jungle de carro, vimos e nos demos com muitos macacos, visitamos muitos templos, o de Meenaqueche por exemplo, enorme, com Universidade dentro – limpíssimo. Um corredor assombrado com deuses enormes esculpidos em pedra – que eu separada de Lesly, não tive coragem de entrar sozinha.

Madurai é conhecida como a cidade do Amor, o Sêmen de Shiva. Mas eu queria o meu templo, o templo pequeno que eu via com uma espécie de praça de terra grande na frente, um pátio cercado por muros e de um corredor coberto, de pedra, eu via além do último muro do pátio, uma pequena colina marron.

— Não tem um templo por aqui assim, dedicado ao deus Shiva? (eu achava que era Shiva)

— Tem sim senhora, ele fica a 8 km da cidade e eu levo a senhora amanhã lá.

Levou.

Não tinha a majestade dos outros. Era pequeno na parte da frente, mas seu corpo atrás se prolongava escavado em imensa cadeia de rochedo. Na frente, ele tinha uma espécie de varanda coberta, sustentado o teto por cavalos empinados com deuses pequenos entre as pernas de baixo. No meio da varanda, estava a entrada. De um lado da varanda, macacos pulavam travessos e do outro lado, um elefante adolescente tirava moedas de nossas cabeças com a tromba. No Brasil eu havia deixado três cachorros e 35 gatos. O elefante me cheirava sem parar e o guia disse que eu estava com medo –quê medo? Ele me cheira com força me empurrando com a tromba. E voce acha que eu posso enfrentar um elefante?

Era aquele templo sim... Imundo, não limpo como os outros, cheio de escarros vermelhos da semente que mascavam, de cocôs de pombos e morcegos vivendo nas traves do teto.

Vendo a minha intenção de percorrer as outras salas do Templo, os hindus fizeram uma barreira para eu não me aproximar do altar e eu lhes fiz gesto de que ficassem tranqüilos.

Naquele dia não pude descer para ver o pátio e tirar minhas dúvidas. O chão de pedra escaldava e meus pés descalços não conseguiram agüentar.

Voltei no Domingo – o Templo enfeitado, um anão todo fardado me mostrava a porta da entrada com cabeças de lança de ferro como proteção, desci e constatei o alpendre de pedra, os muros do pátio e a pequena colina marrom. Chorei muito e os mendigos deitados no chão onde, impressos na pedra, se viam pegadas humanas – eles perguntavam se eu queria que eles riscassem meus pés com giz – eu disse que não.

Em um altar secundário ali, enquanto o sacerdote hindu se distanciou para o fundo, eu arranquei cabelos meus e escondi numa mesa do altar – o sacerdote voltou com uma bandeja, me pôs uma comida na boca com gosto de cana e me apresentou outra bandeja com cinza em que eu mergulhei os dedos e risquei três listras na testa como os três reinos de Shiva – ele fez com a cabeça que estava bem. lá, abanando a cabeça quer dizer "sim".

Lesly comprou "santinhos" e descobriu que o templo era consagrado ao deus Murunga, um filho de Shiva e Parvati. Murunga é conhecido como o Subramanya ou o Kartikeia, muito cultuado em Bali e em toda Indonésia.

Dali ainda visitei Madras.

Anos depois, quando tomava café da manhã num hotel no Egito, a mesa da minha excursão dava para uma janela com uma bandeira. Ali posou um pássaro grande e com o pescoço um pouco cinza, por baixo. Todos perguntavam que pássaro seria.

Eu disse, já com conhecimento de causa:

- É um corvo...

Clarisse de Oliveira

voltar