A CONSTRUÇÃO DO DESTINO

No início pensei que estivesse sonhando. Aquela sala, aquele laboratório de imagens, sons, cores, nomes, datas, estatísticas, formando uma bagunça infernal, controlada atabalhoadamente por um número imenso de pessoas se atropelando, se descabelando, parecendo enlouquecidas, como se jogassem um jogo onde cada lance fosse de vida ou de morte, os olhos esbugalhados nas telas, onde se movimentavam pessoas, seres, coisas, numa sucessão alucinante, apertando botões, virando manivelas, gritando e torcendo, não, não podia ser real.

Por outro lado, eu tinha plena consciência de estar são, lúcido e acordado. Às vezes, sonhando, imaginamos estar vivendo um momento real. Mas, quando isso acontece, não passa de uma impressão fugaz, que logo se desvanece pelo despertar ou pela simples apreensão de que aquilo é mesmo um sonho. Naquele momento, eu podia sentir, sem dúvida, que estava presenciando uma cena real, que estava vivendo dentro dela, embora o seu absurdo.

A passagem para aquela realidade foi estranha. Eu dirigia meu carro pela estrada, durante horas e horas. Anoiteceu. O tempo estava fechado, úmido, e às vezes chovia um pouco. Andei ameaçando cochilar, mas conseguia vencer o sono, na esperança de encontrar algum lugar onde pudesse descansar. Em um dado momento, tive uma impressão fora do comum. Olhei para o foco dos faróis, iluminando fracamente a estrada, e tive a sensação de não me encontrar mais no mundo concreto. É difícil de explicar isto. A estrada era a estrada. As árvores que a ladeavam também eram árvores. O breu da noite era a escuridão do mundo, mesmo. Mas, por dentro de mim, eu sentia que aquilo que via não era da mesma dimensão onde estivera segundos atrás.

Finalmente, encontrei um posto para encher o tanque do carro, repousar um pouco, fazer um lanche. Não conseguia tirar de meu íntimo aquela impressão de que havia trespassado uma parede entre dois mundos, embora tudo o que visse não fosse em nada diferente do que sempre conhecera. Apenas o som parecia algo mais reverberante? Os movimentos escorriam mais lentos e o tempo parecia palpável, pastoso? Quem sabe. Talvez não devesse ter dado aquela carona. Mas, afinal de contas, eu mesmo a ofereci. Quando entrei no bar para lanchar sentei-me a uma mesa onde já havia alguém, pois todas as outras estavam também ocupadas com duas ou mais pessoas. Puxei conversa, fiquei sabendo que o homem ia para a mesma direção que eu e que aguardava alguma condução. Não titubeei em propor que fosse comigo. Quando saímos pela estrada, já era dia claro, o sol brilhava intensamente por entre restos de bruma. A estrada continuava me impressionando de um modo estranho, como se não fosse a lugar nenhum. Quando vi a indicação de "Destino" a dois quilômetros, por uma estrada secundária, senti ímpeto de entrar nela e o declarei ao companheiro de viagem, que sorriu condescendentemente. Enigmaticamente, eu diria melhor, agora que o tempo passou e tudo aconteceu.

Dois quilômetros depois, chegamos ao local anunciado. Era surpreendente! Uma edificação perdia-se de vista para ambos os lados, com uma enorme porta bem à nossa frente. O homem que viajava comigo tomou a frente, como se me conduzisse. Quando entramos, a surpresa foi ainda maior. Tratava-se de uma sala imensa, repleta de mesas, de aparelhos e de pessoas sentadas trabalhando. Era aquele lugar maluco de que lhe falava. Meu companheiro, que pouco falara até então, começou a apontar-me as coisas e a dar explicações. Ali era onde os destinos das pessoas eram traçados, passo a passo. Os trabalhadores não eram mais do que projetistas da vida de cada um. Nas telas, as pessoas cujos destinos eles traçavam apareciam focalizadas no momento exato daquelas ações, "ao vivo", como diríamos em uma emissão de imagens pela televisão. Pois as coisas que cada pessoa fazia, assim como todas as circunstâncias daquele momento, eram as ditadas pelas emissões mentais dos controladores do destino. Era como se eles estivessem escrevendo a história de cada um, letra por letra, palavra por palavra. Passei por uma, duas, dezenas de mesas, acompanhando o trabalho daquelas pessoas e vendo-as conduzir a vida das pessoas como se elas fossem participantes de um teatro de marionetes. Cada um dos passos dos protagonistas daquela encenação era dirigido como se a pessoa que o fazia fosse aquela que estava do lado de cá da tela, não ela própria. As palavras eram postas na boca de cada um, como quem lê um texto de uma peça teatral. Não conseguia conter meu espanto. Lembro-me que, atônito, perguntei ao meu guia se nada do que as pessoas faziam era de seu próprio arbítrio. Fiquei menos chocado ao saber que sim, que havia atitudes que ficavam fora do controle daqueles agentes. Disse-me que cada controlador regulava o destino de dezenas de pessoas e, portanto, tinha que desfocalizar, a cada momento, todas as demais para controlar o destino de uma. Assim, ia alternando. Ora controlava o destino de uma pessoa, ora de outra, e assim por diante. Deste modo, no tempo em que uma pessoa estava desfocalizada, suas ações corriam por sua própria conta. As conseqüências dessas ações autônomas seriam tão importantes na seqüência do destino de cada um quanto marcantes, graves e determinantes fosse o seu cunho. No mais das vezes, dizia-me o guia, as ações autônomas eram de pouca importância e não carregavam repercussões de monta, enquanto, por outro lado, os controladores estavam sempre atentos para imprimir ao destino de cada um atitudes de grande importância, que deveriam repercutir extensamente em suas vidas. Em alguns casos, por pura coincidência, uma determinada atitude tomada livremente por alguém faria com que o restante da vida daquela pessoa seguisse tal ou qual rumo, contra ou a seu favor. Certas pessoas, continuava dizendo, parece que têm a capacidade de intuir isso e, literalmente, acabam tomando as rédeas do seu destino, aproveitando-se dessas folgas para reverter tudo para o rumo que pretendem tomar, para o caminho que querem seguir.

O barulho, à medida que nos aprofundávamos no salão sem fim, tornava-se ensurdecedor, especialmente porque muitos dos controladores ditavam os movimentos dos seus controlados em voz alta, aos berros, exagerando os gestos e expressões que queriam que fossem feitos e gritando as palavras que queriam que fossem ditas.

Pensei em quanto aquilo tudo era terrível. Quer dizer que nossos destinos eram realmente predeterminados e que não aproveitávamos os espaços vazios deixados por esse controle para direcionarmos nossas vidas? Entendi que bastaria, para tomarmos os nossos destinos em nossas próprias mãos, observar o rumo que as coisas estivessem tomando, a cada momento, para, caso aquele não fosse o sentido que desejássemos, irmos tentando, insistentemente, adotar atitudes que mudassem aquele sentido para outro que julgássemos mais conveniente, até o conseguirmos, isto é, até que ocorresse aquela falha do controle do destino, que volta e meia aconteceria, para que nossa persistência tivesse efeito.

Minha vida, a partir daí, poderia ser outra. Eu não voltaria a ser vítima permanente da fatalidade, como acontecia desde que me entendia por gente. Não. A partir de agora observaria atentamente o correr da carruagem. Quando as coisas não estivessem me agradando, simplesmente usaria uma bateria de atitudes para mudar o seu passo, virá-la para cá ou para lá, segundo me aprouvesse.

Queria sair. Peguei o guia pelo braço e falei-lhe do meu interesse em ir embora o mais rápido possível, interromper minha viagem, voltar à minha cidade, pôr em prática os novos conhecimentos.

O guia sorriu amigavelmente. Apontou-me uma escrivaninha com uma tela, papéis, manuais, livros e inúmeros aparelhos, como todas as outras, e disse-me:

— O seu destino já está traçado. Aquela é a sua mesa...

Goiano Braga Horta


 
 
 

« Voltar