O ovo

          Eu sempre tenho razão.

          Quando digo que se não fosse a noite escura e o vento maligno, tudo poderia ser  diferente, estou certo disso. Não dava para enxergar um palmo diante do nariz, como é que a coisa poderia funcionar de outra maneira? Mas Alep e Tanya, com a teimosia costumeira, não quiseram me ouvir. Alep vive no mundo das estrelas, com seus pensamentos vagos, pra cima e pra baixo, como se fosse a coisa mais importante do mundo. E cismou de cantar!...Música não é proibida no ninho, mas é altamente comprometedora. Já imaginou, se todos quiserem imita-lo?... Nem pensar!... Estou aqui há muitos sóis vermelhos e nunca vi coisa igual... Tanya ainda é muito jovem. Se tivesse mil anos, como eu, veria que as coisas  nem sempre são fáceis como julga. Tanya e suas verdades de sobrevivente... Quem é sobrevivente há mais tempo? Não quero alegar, procuro ser discreto, mas sou muito suscetível a certas coisas. Sei que Alep e Tanya só saíram pelo Eral naquela hora porque o vento cantava de forma diferente e não havia nenhuma lua no horizonte escuro. Às vezes, o ninho pode ser cansativo, eu reconheço. O calor, a tranqüilidade absoluta, a umidade morna... Mas, francamente, com aquele vento e naquela noite!... Só dois malucos como eles!... Sempre fui muito criticado por amar o ninho acima de todas as coisas. Mas é como tem que ser. Sem ele já teríamos ido há muito tempo para as planícies geladas do não-ser...Rituais de Acasalamento tem que ter procedimentos determinados. É o que diz a Regra. Respeitar as fogueiras, consultar os mais velhos. Nunca em noite sem luas, nunca com o vento soprando daquela maneira. E nunca, mas nunca mesmo cantar, longe do ninho, a música agreste da paixão.

          Deu no que deu.
 

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          Sei que posso estar errado, mas não me arrependo. Rebus é cheio de certezas e o ninho, às vezes, nos dá maus conselhos. Mesmo assim, eu quis tentar. Se a noite estava escura, havia brilhos cintilando nos Erais e eles piscavam de tal maneira que era fácil achar a estrada para longe de nós. Tanya não teve culpa, ela apenas me seguiu, seguiu a luz do caminho que nos levava, enquanto o vento cantava aquela cantiga de amor.

          É uma cantiga de amor.

          Rebus não sabe porque o amor nunca foi prioridade dele. Acredita que a mente pode manter o ninho indefinidamente em seu período ideal.

          Mas a mente pode ser também invejosa e parcial. Quantos ovos se perderam por falta de uma palavra, um gesto, uma canção.

          Eu acredito nisso.

          Vi quando morreram os últimos ovos, trêmulos, as membranas se desfazendo, os fios que ligavam as hastes circulares cada vez mais tênues, o sopro vital se liquefazendo sobre o campo energético do Eral. Poucos sobrevivemos. Porque não reconhece isso? Os que restaram dormem na inconsciência do ninho e não ouvem cantar o vento do Acasalamento. Pior pra eles.

               Rebus, porque tem mil anos, pode impedir a voz na noite que chama para o encontro?

               Não lamento o que houve e sei que vamos conseguir.
 
 

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          Rebus está sempre certo.

          Acha que, porque tem mil anos ( grande coisa! ), pode ditar a temperatura do ninho, pode impedir o vento de soprar, apagar a noite e nos manter trancados na tépida umidade do sempre igual.

          Ninguém me obrigou, fui porque quis, porque eram belas as cintilações do Eral e porque Alep estava lá, na noite sem luas do ritual do Acasalamento.

          Ouço ainda sua música e sei que meu ovo vai ser o melhor de todos, apesar de Rebus.

          Porque não posso me encontrar com o outro na escuridão do desejo, ouvindo os sons que vem do seu chamado e me perder no vento da paixão que o Eral permite. Não há no mundo nada que se compare à vastidão do encontro. Rebus, com suas regras, seu tenso controle, suas luas pálidas e mortas, quis nos prender no ninho e agora está zangado.
 

               Não acredito que o meu ovo vá se perder no espaço como os outros.
 

              E não me arrependo nunca. Não, Rebus, ele é meu. Fruto do encontro com Alep na escuridão do Eral que cintilava e do vento que soprava seus sinais.
 
 

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          Pobre Tanya. Pobre Alep. Quanta ingenuidade e ignorância... Não vêem que o vento é mentiroso e que a cintilação na noite escura é apenas o reflexo de suas mentes distorcidas, enredadas pelos desejos criados na escuridão.

          Sempre, através dos tempos que se perdem no longínquo, os ovos foram feitos da matéria fria, do sopro racional da comunidade e assim vivemos há milhares de anos dentro do ninho e o Eral nos abençoa com ventos bons e luas promissoras. Os sóis vermelhos nos alimentam e nunca precisamos dos Rituais de Acasalamento fora dele. É claro que o ovo concebido dessa forma é uma aberração e não sobreviverá à passagem do novo vento.
 

          Tenho muita pena daqueles dois, mas é assim que as coisas são. E sempre foram. Agarrar-se ao ovo é uma forma de perdição mais destruidora do que a paixão que os fez largar o ninho na noite escura ao cantar enganoso do vento do desejo. Infelizmente esse ovo não vai se adaptar ao ninho e deve ser abortado.
 
 

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          Nosso ovo sobreviverá. Se o ninho o rejeitou vai crescer dentro de Tanya. No seu ventre o coloquei e ele está lá luminoso e brilhante como as luzes do Eral quando a noite do Acasalamento nos uniu.
 
 

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          Meu ovo cresce dentro de mim e me penetra, me torna fértil. À nossa volta sopram ventos fortes que o ninho nunca poderia suportar. Alep e eu vagamos pelo Eral, os sóis aquecem a nossa teia e chocamos meu ovo que se torna mais denso a cada dia.

               Rebus mentiu. Seus mil anos foram de ilusão e morte. É a verdadeira vida que acontece agora. Dentro de mim.

          Nos sóis ardentes e na escuridão cintilante do Eral pressinto seu vulto que se avizinha.
 
 

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          Como podem se enganar tão tolamente? Não há nada de criativo além do ninho. O Eral é enganador quando se deixa a proteção do início. O vento destruidor sopra em volta deles e eu nada posso fazer para salva-los. Nem desejo. Espero.
 
 

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          Nosso ovo me consome. Dou a ele minhas energias e a potência masculina do meu ser para que seja. Cada vez mais me perco nele.
 
 

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          Meu ovo absorveu Alep e era o que tinha que ser. Cresceu dentro de mime os sóis que giram dentro dele aquecem meu sangue e me fazem cantar as canções do Acasalamento que o vento soprava sobre nós nos longínquos tempos da concepção.
 
 
 

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          Ele já devorou Alep. Vai absorver Tanya também e eu nada posso ou quero fazer. Dentro do ninho observo o sol sangrento e o vento ruim soprando. Sei com toda certeza o que vai ser. E mesmo no aconchego do ninho, às vezes meu coração se fecha ao pensar neles.
 
 

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          Meu ovo é belo e forte como o Todo e cada vez me sinto mais perto dele. Ele é meu centro. E me suga para o vértice de suas espirais de carne vermelha. Bóio entre suas entranhas, suas vísceras macias e cresço, cresço, cresço até atingir o sol vermelho que me chama.

          Então me envolvo no vento e volto ao ninho.
 
 

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               Eu sempre tenho razão.

          Quis que assim fosse e os tolos seguiram seus impulsos como eu previ. Não posso ser a emoção, mas posso controlá-la. Foi pena sacrificar membros tão perfeitos do meu ninho...

               Mas o novo ovo é forte e vai sobreviver por mais mil anos.

Maria Helena Bandeira

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