FÚRIA
                para Lúcio Cardoso
Ó velho e fiel coração, que
durante tanto tempo labutou por
mim. Consumi minha vida navegando
através do mar.
(William McFee)
A lua de lobisomens, fértil e vermelha, assombra o coração de uma mulher acostumada com os hábitos da angústia. Ela quer alguém para trocar sensações, ensinar que pios de corujões anunciam desgraças, impregná-lo com o seu cheiro selvagem, contar sua história sofrida e esperar o resultado de tão inusitada confissão. No boteco, um conhecido toca violão, outros bebem lendas de cacau e morte, e um estranho,  encostado num canto, está longe, além desse mundo, sem qualquer interesse lógico pelas reações humanas. Ela olha-o com curiosidade, desviando a  visão para a prateleira suspensa por cordas de couro: carne-de-sol, rapadura, pingas temperadas, farinha de mandioca, pacotes de velas, fumo-de-rolo, papel de arroz – uma mercadoria vital ligada  à cadência das necessidades masculinas básicas. A luz das lâmpadas de querosene, escura e fumacenta, atrai mariposas e besouros, dando uma impressão cruel aos olhos enigmáticos. Ela não consegue decifrar que espécie de olhar é este, um olhar agourento de um homem sem idade definida, um olhar carregado de diferenças e significâncias. “Faltam sete para as nove”, alerta um velho anão. A mulher ergue o copo sujo, rachado, falando em voz muito baixa, perto do ouvido do estranho: “Pode guardar um segredo? Vou acabar não podendo esquecê-lo por culpa dos seus olhos”. “O que está pretendendo, mulher?”. “Nao se preocupe. Queria apenas dizer que a lua cheia me enlouquece”. “É uma vigarista?”. “Trabalhei a vida inteira”. “Está querendo um cigarro? Vamos, acenda um”. “Muito bem, aceito o seu cigarro”. “Agora me deixe em paz, mulher”. Ele fecha-se outra vez em si mesmo, não deixando escapar nada mais. Ela bebe demasiado, dançando ao som de vozes confusas e palmas sem ritmo enquanto dedos grossos seguram seus peitos murchos. Sufocada pela solidão e o fedor de fezes de cavalos que vem dos companheiros brutos, chora. É jogada  em um quarto sombrio e imundo. Ouve-se um  canto de algum pássaro noturno e, abafadas, risadas escancaradas, bêbadas. Sem querer aceitar o próprio sono, ela fecha e abre os olhos diversas vezes, despertando ao vomitar um líquido verde, pastoso. Da janela, a noite quente se revela inteira num panorama oferecendo mistérios à natureza. No alto do céu cintilante, a grande montanha de cacau, à beira da lua; o odor forte e bom das bananeiras,  miados de onças no cio, minúsculos pontos de luz de fifó de casebres perdidos – tudo revela a poderosa beleza  da escuridão. Ela, mulher sem ninguém, quem é? O que a deixa insatisfeita com a sua aparência?  Na cabeça, a incompreensão do que realmente espera do estranho que a desprezara. Limpa-se num cobertor de retalhos, porco, e salta a janela, caindo num canteiro de margaridas ressecadas. A estrada de terra  bordada por atoleiros; um vento seduzindo folhas secas. Através de uma fresta, vê os homens na mesma alegria, como se não sentissem a ausência dela. O desconhecido não está no seu canto. Desespera-se, não suportaria não vê-lo nunca mais. Enche o espírito de imagens passadas que levaram-na a esse repentino estado de emoção. Pode recordar todo o seu drama, já que nenhuma mentira importa para nada – é essa a única lucidez da estranha mistura de verdade e terror que a miséria absorve. Se amasiou com um jagunço sem trabalho e por demais valente com mulheres inofensivas, vivendo uma morte esperada. “Não sei mentir, o círculo fechou-se, matei meu macho com duas facadas, enterrando seu corpo mulato num cocho de frutos secos”, sussurra. Sabe que está perdoada, próxima da compreensão universal: é a vitória da labuta. Algumas horas antes de morrer, ele chegara tombando, ébrio, amarrou-a aos pés da mesa, enquanto seus filhos choravam de medo, e acusou: “Eu sou honesto e procurei viver com uma mulher decente, mas você não passa de uma rapariga”. “Ache o que quiser, não me importa”. “Os compadres falaram-me que você não presta, que recebe a visita de machos na minha própria casa. Estou desapontado. O seu destino é parar num brega de beira de estrada”. Quando descobriram o corpo turvo na manha seguinte, chorou em excesso, humilhada, e foi consolada por mulheres tão infelizes quanto ela, “o homem tinha muitos inimigos, comadre, e melhor a morte  dele do que a de um dos meninos”. Assim iniciou-se na vida aventureira, partindo para o sul de luto fechado, antes distribuindo sem qualquer remorso seus quatro filhos magros e feios, prometendo pegá-los logo que tivesse amparada, coisa que nunca o fez. Procurou outras terras para recomeçar a vida, não queria  se sujeitar a uma luta diária conhecida, insignificante e sem saídas. Pensou com honestidade, não era fútil, tampouco tinha receio de tocais no seu trajeto solitário – herdou a impressionante energia das matas, gigantes, agarradas firmes na terra negra, projetadas para a eternidade, acostumando-se a paralizar-se com o cheiro afrodisíaco, inquieto, que vem delas. Trabalhou bastante tempo no cacaueiro, combatendo pragas dessa planta sensível a moléstias e exigente em calor e umidade. Adquiriu um terreno, um pedaço de roça. Um dos companheiros que teve, negociou-o com um caixeiro viajante, deixando-a sem recursos. Bebeu acima do permitido, procurando esquecer a inutilidade do trabalho árduo -  nunca o conseguiu, por ter consciência da origem infame do luxo dos coronéis, ricos graças ao sofrimento de vermes como ela. Nos últimos anos, enfrentou excessos que a consumiram inteiramente: a própria idade, a espera do tutor que nunca veio, a esperança e o vazio, a violência rural escrava. O cacau adormece protegido por altas árvores. Ela persegue um vulto de olhos bruxulentos por caminhos mal-iluminados por vagalumes e estrelas azuladas. Depois da encruzilhada, avista-o na beira do córrego observando a ponte e coçando o saco, enquanto fuma um cigarro debaixo de uma jaqueira. Ela pensa em cobras assassinas engolindo rãs nos brejos, em morcegos-vampiros fugindo dos ninhos, num temporal partindo troncos. “Não se sente atraído por mim?”, ia preguntar e termina dizendo, “Vamos nos deitar no capim e observar estrelas cadentes?”. “Podemos falar outro dia.  Deixe-me  sozinho”. “Estou doida por você. Quero enchê-lo de coisas boas. Olhe para mim, ainda sou bonita”. “Sei que luta pelo que quer, mas não estou com vontade. Pelo menos, não esta noite”. Os grilos cantam, tudo ondula, e novamente pensa em répteis, sentindo um gosto horrível na boca. Ele é dela, ela sente. São um só. Um homem escapado da própria alma errante dela, como seus filhos tão longínquos. O estranho oferece fumo-de-corda sem qualquer gentileza, apenas por obrigação, enquanto ela enxerga as desilusões existenciais. Arranca um espinho de limão-balão da anágua, tocando  os dedos frios nas costas morenas dele. Insinua malícia, repetindo ousadias que  queimam seu ser. Ele sente nitidamente o aconchego, e vira-se, olhando-a com dureza, enquanto acende o candeeiro que tirara do bocapiu, mostrando perfeitamente seus olhos mortos. O sangue da mulher ferve, não aceitando outra rejeição. “Este é realmente um redemoinho, um redemoinho que vocês chamam vida”. Ela odeia o seu cheiro de pinga e fumo. Odeia os momentos de trevas, mas jura que não rezaria para esquecê-los. Rezar ameaçaria sua liberdade. Odeia ter a certeza que não é ninguém, é uma rainha; não tem chão, tem  coxas cheirosas; é uma personagem de um conto escrito com vivências. Enfia de uma só vez o espinho num dos olhos dele. O homem cai para trás, metamorfoseando-se num monstro pavoroso de olho vazado. Seria o Cão? Dispara pela mata, ouvindo os berros de dor do bicho atacado. Entra num atalho, afasta cipós, correndo pela vegetação inchada de cocos amarelados. Quando se dá conta do perfume do cacau, joga-se numa trilha que leva diretamente ao centro da montanha, e chora, saciada, esquecendo a imortalidade e a insignificância de uma flor esmagada.

Antonio Júnior

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