Fragmentos

               Os escuros tipos dessa máquina inscreveram-se no incompreensível, e lá ficaram, vadiando no intrincável de órgãos de gentes. Moradores de uma dimensão Torre de Babel, esses tipos pluricadacoisa se foneticam, se silabam, se outros modos ad-ifinitum. Forcei-me para dar vontade minha, aos dedos sem vontades, flutuadores dos âmbitos dos imperativos sem categorias. Mas nada a minha ignorância racional decodificou.

               Atrevi-me a continuar a escrever o inescrito, apelando para incipientes conhecimentos semióticos. Mas a semiótica - ou a minha - apenas me fez perder a cabeça e desesperar os dedos, que malucamente desescreviam.

               Falando menos alto o hábito ocidental de historicizar antropomorficamente, concluí a bobagem em que me metera na infantil pretensão de ser profundo, buscando sentido na sua falta. O desfacelamento de um corpo era real e suas partes eram a expressão da mais extrema angústia. Ao mesmo tempo, também, tais partes irradiavam um alívio de um doido. Isso definitivamente me deixou intrigado.

               Um pênis esmorecido, por exemplo, olhava uma gravura de uma densidade de nu, parecendo a concentração individual de todas as mulheres do mundo. Enquanto um pé andava pesadamente uma terra pré-histórica, um outro calçava-se à última moda. Enquanto uns dedos se abstraíam até às raias da imaginação esquizofrênica, os outros puxavam uma lombriga de um cu sem bunda. Enquanto um olho acordado olhava para onde eu não podia, o outro dormia. Enquanto um ouvido ouvia sem som, o outro sempre perguntava o quê que a boca - que procurava os dentes - reclamava. Enquanto o coração ocultava um medo de entranhas, seu tum-tum ritmava um samba enredo de auscultação. Enquanto, por fim, os enquantos eram preenchidos às

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               simultaneidades, de impossíveis maneiras diferentes, um homem, amarrado, assistia à personificação individual de suas partes.

               Sua cara era de inverno. Sua aparência, primavera sem flores. Seu tormento, folhas caídas. Sua vaidade, de poetinha com os pés na filosofinhasinha; sua fala, patética, bafava tudo. Mas sempre pendia para a persuasão espelhesca: o que aproximava e desaproximava as pessoas.

               -- Me tiram daqui. Quem me colocou nesse invisível onde minhas dores e minhas alegrias andam separadas e centradas nas perspectivas de meus membros? Quem me faz sentir os prazeres e os dissabores mais puros do mundo? Quem me impõe o suicídio e a libação, a coragem e a covardia; a preguiça e a atividade; a traição e a confissão; o ódio e o amor; o individual e o coletivo; o fim e o começo, tudo, juntos e absolutamente separados?

               -- Eu, que te imprimo a (pá)lavra, que poderia ser um computador mas sou uma simples máquina de escrever. Eu, que te escrevo e te desfibro : te conto de diferentes modos que em ti existe: pois todas as letras possuo e todas as combinações posso fazer.

               -- Mas por que a mim escreves tão na terceira pessoa que ciência alguma imagina?

               -- Não te sintas escolhido. Qualquer pessoa sua e soa o universo. Teu cérebro tomei como o de um gênio.

               -- Não me venha com esse tom de quem sabe de tudo.

               -- Nada de conhecimentos. Escrevo-te de forma misteriosa e milagrosa, como a vida.

               -- Mas para que isso?

               -- Associo símbolos, não finalidades.

               -- Você sofisma. Seu estilo não me convence.

               -- Meu estilo não é minha alma. Nem alma mesmo possuo. Sou pura impressão. Atrás, em torno, em todos os vetores, verossimilho os acontecimentos, emprestando palavras às circunstâncias.

               -- Meu Deus! Será que esse sabichão sabe me dizer por que suas respostas parecem ser minhas?

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               -- Pois se estou dizendo que tudo posso escrever... estou dizendo que sou o acaso.

               - Vai, não me faça fazer a pergunta...

               -- O acaso. O acaso. O acaso. Sou o acaso. Antes de mim, o caos; depois, memória. Pendulando nesta ou naquele, ora dou luz, ora dou treva. Dando luz, sou o Ocidente e seus espetáculos: ciência, poder, construções, trabalho, shopping. Dando treva, sou paixão, omissão, medo, desciência, despoder: sou o outro lado da moeda, a luz que não encontrou o dia, o escuro que não encontrou a noite, o que ficou atrás: e era na frente. Assim, o nascimento acaso-luz ou acaso-treva, dependem do olho de quem vê. Mas não se engane que o mundo pode estar sendo visto por míopes.

               - Não quero mais dramatizar. Foi acaso uma fase. Quero saber apenas em que acaso você me inscreveu?

               -- Em acaso algum, porque assim não seria acaso. Apago e dou luz, conforme o caso.

               -- Mas a causa e o efeito, a História, as previsões: esse sistema simbólico, a vida?

               -- São nomes amarrados.

               -- Outra vez esperava esta resposta.

               --Será a intuição casual coletiva?

               Teratológico, minha cara eram minhas pernas, meu sexo era meu cérebro, meu cérebro, meus excrementos. Estava desencontrado, desarticulado, tudo estava confundido, nem fundo nem raso era; nem eu nem ele, nem nós, nem qualquer possibilidade. O impossível: era o impossível. E eu era a humanidade inteira.

               “Escuta, sou sua contradição, seu interdito. Não sou linguagem. Nem nunca li Heidegger.”

               “Não vem que não tem, você não é aquém. É agora. Surge e ressurge do movimento das digitais. Seu dilema é o descompasso das letras, e isso ainda é linguagem.”

               “Que bobagem. Chega de ser ou de estar. Você e eu, qual a nossa diferença? Eu, o texto, você o contexto?”'

               “Talvez o inverso. O verso do in.”

                                            

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               “Alguma ilusão nos acomete. Algum olhar diverso. Enquanto me escrevo, faço-me, desfaço-me, e já nem mais distingo farsa de massa.”

               “Maçante, fazer outra coisa, e não aquilo que quereríamos. Os disfarces são tantos e o desimportante sai pelo ralo. Toxinas de bostas.”

               “A técnica é tanta que as flores não precisam do esterco.”

               “Rrrrreuoeoultrtueidoslieosloelsl”. Grito, e são só letras.”

               “Onde está o erro”

               “Você escreve mal. Perdeu o fio da meada. Já não pode fazer todas as combinações?”

               “Quem? De quais combinações eu ou você falamos.”

               “Não sei, verborragia. A arte não imita a vida. Uma forma de vida. Uma vida ida?”

               “Artifício, a vida e a arte. A vida é bela, se é jogo? Benigno ou maligno?”

               “Alguém escreve. Alguém é autor. Alguém dita. Alguém é responsável. Alguém está perdendo, no jogo.”

               “Era preciso lembrar?”

               Braço, braço, braço. Pernas, pernas, pernas. Orelhas, orelhas, orelhas. Voz, voz, voz. Todos, todos, todos, desabando a bastilha das partes, quebrando o espelho de onde nós nos tornamos inteiros, morrendo para a partinha-todo, fazendo-se ao antes do depois, ao antes redimido no depois, ressuscitado no depois: a utopia da felicidade se escrevendo no corpo do olho da letra cega, tateando o retorno do impossível, .

               Enquanto os dedos digitavam, as letras desbaratavam as palavras, as palavras, a frase, a frase o discurso, o discurso, o curso, o curso, a lei, a lei, a ordem, a ordem, o dia, o dia, a noite, a noite, o cosmo, o cosmo, o outro, o outro, a si, a si, a mim, a mim, a ti, a ti, a ninguém, a ninguém, a alguém. O desfluxo fez-se fluxo: o não rio, rio. E tudo não retomou seus ilegítimos lugares.

               Todo lugar é ilegítimo?

Luis Eustáquio Soares

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