ENCONTROS E DESENCONTROS

Após dezenove anos, três filhos e todos os malabarismos para pagar hipoteca, planos de saúde, supermercado e a escola das crianças, Erasmo e Maria Clara mal conversavam. Mais do que a falta de tempo, perderam o hábito. Cansados, ao fim da noite não tinham ânimo nem para o sexo, quanto mais para discutir a relação ou mesmo os acontecimentos do dia.

A rotina era puxada: acordando pelas seis, Erasmo banhava os filhos sonolentos enquanto Maria Clara preparava a refeição matinal. Após a van do colégio partir, uma folheada no jornal, um gole no café, um olho no relógio. Com o lixo posto para fora, seguem para o metrô em silêncio, preocupados com atribulações, colegas, chefes e documentos. Algumas perguntas com respostas já conhecidas, onde completam o raciocínio do outro sem dúvidas ou protestos, porque o tempo, esse não pára.

Mas hoje não vivem tão mal quanto ao início do casamento, de favor com amigos e Maria Clara enjoando pela gravidez não desejada, mas bem-vinda. O primeiro filho os unira ao dividirem risos, caras de bobo, orgulho rasgado. Dividiram também a necessidade de um lar só deles, remédio, médicos, leite, fraldas e noites em claro.

E assim, sempre correndo para não faltar com os seus, seguiram a vida. Sentiam-se bem, ou pelo menos, não pensavam no assunto. O tempo lhes trouxe alegrias, tristezas, dívidas, promoções, mas uma hora a vida cobra todas as decisões tomadas, as escolhas adiadas.

Já na estação do metrô, espremidos no mar de gente, aguardam a chegada do próximo trem. Maria Clara lia o jornal que recebera logo cedo, Erasmo as propagandas espalhadas, inquieto. Passara os últimos dias tentando se lembrar de como era sua vida com Maria Clara, sua Mariquita, lá atrás, no começo, antes dos filhos, família, compromissos. Mal conseguia recordar. Puxava pela memória, confuso em meio às tantas pessoas que iam e vinham. E então lembrou do dia em que conhecera Maria Clara, sábado de carnaval, atrás do Bloco do Eustáquio. Perdida de sua amiga colombina, Maria Clara era uma cigana ao sabor de sua sorte, que encontrara conforto nos olhos plácidos de Erasmo.

Com um meio sorriso nos lábios, Erasmo observa Maria Clara, absorta em sua leitura. Erasmo lhe perguntou coisas simples, ao que ela resmungou respostas:

- Você passa no colégio pra pegar o Rodrigo? Eu pego o Marcelo no inglês.
- Ahã, tá.
-Almoça comigo hoje?
- Ahã, tá bom.
- Sei lá, podíamos sair hoje à noite, talvez um cinema, que acha?
- Tá.
- Seu cabelo tá pegando fogo, Maria Clara.
- É sim. – o celular dela toca – Alô? Não, já tô chegando. Já tá no escritório? Não tô te ouvindo direito, até daqui a pouco. – O que você tava dizendo mesmo, Erasmo?
- Nada.

Mais outro trem chegou e saiu cheio, e a multidão não diminuía. Empurrados e apertados, Erasmo e Maria Clara se perdem um do outro. Maria Clara, em sua ginástica de ler o jornal e segurar a bolsa rente ao corpo, nem percebera. Ao virar para o lado e comentar uma nota lida, não encontrou Erasmo. Pôs-se na ponta dos pés, alarmada. Procurou manter a calma. Nada do marido. Mas o que mais lhe incomodava era a estranha sensação de solidão que lhe invadiu ao se ver sem Erasmo. Respirou fundo, e entrou no próximo trem. Ele se viraria bem sozinho.

Ao sair da estação, caminhando por ruas já tão conhecidas, o celular de Maria Clara toca:

- Alô?
- “E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga.
Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.
Mas, se não fosse ele, também
que graça que a vida tinha?
Mariquita, dá cá o pito,
no teu pito está o infinito.” (*)

E assim estavam, Maria Clara e Erasmo, parados, estancados frente a frente, ainda com os celulares ligados, dezenove anos, três filhos, o primeiro e único amor, de sempre e para sempre. E abriram um sorriso que iluminaria uma cidade inteira.

Aleksandra Pereira

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(*) "Toada de amor", Carlos Drummond de Andrade

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