O CANTO DO CISNE SELVAGEM

Fazia tempo que ouvia o canto do cisne. Desde pequena, na verdade. Desde quando o corpo era coberto apenas por uma suave penugem clara e ela o segurava ternamente entre as mãos, sem apertar, e ele, assustado, queria fugir. Gostava de passear mansamente suas mãos por ele, sem pressa.

Seu canto era como uma recompensa. No começo, só ela o ouvia. Ninguém mais. E era chato falar de algo de que ninguém mais sabia, em que não prestavam atenção. Ou que fingiam não ver, talvez.

Com o tempo, a penugem branca foi escurecendo e o cisne fez-se negro. O bico laranja-avermelhado e os olhos vermelhos despertavam curiosidade, contrastando com o escuro da plumagem. E ela achava bonita essa complementação de cores.

Seguiu ouvindo o canto do cisne com freqüência, persistentemente. Canto misterioso. De manhã, de tarde, de noite. Muitas vezes de noite. O silêncio das madrugadas desertas parecia despertar o seu canto, com sua tamanha quietude. Apesar da freqüência, ela não entendia o que seu canto queria dizer nem porque cantava. Mas isso não tinha importância.

O tempo passou e ela foi se acostumando com o canto ora agradável, ora melancólico, sempre companheiro, que ela conhecia tão bem. Por longos anos, acreditou mesmo que só ela podia ouví-lo. Como fazer, sem ter com quem dividir a magnitude daquele canto? Aquele canto doído, de tão belo? Aquele canto tão... forçosamente solitário, um segredo entre ela e o cisne. A beleza de sua imagem. Que a fazia despertar por longas noites a fio, desfiando rosários quentes da vontade mais pura de dividir.

O cisne negro tinha sido para ela uma descoberta, tocada com avidez pelos dedos frágeis da infância. Mas seu canto estridente era trancafiado em silêncio, como que mergulhado embaixo de suas saias de menina. Como um brinquedo que se esconde debaixo da cama.

Adolescente, começou a encurtar as saias, tirar as meias, navegar por outras águas. O corpo pedia uma liberdade que não lhe queriam dar, mas que ela pedia. Ainda que em silêncio.

Um dia, por acaso, descobriu que uma amiga também ouvia o canto do cisne. Ah, então era verdade! A realidade do fato muitas vezes tinha sido questionada por ela própria - já que uma verdade ouvida por um só muitas vezes acaba parecendo ilusão... ou loucura. Uma verdade só cresce como verdade quando é compartilhada, dividida por almas gêmeas. E agora ela não se sentia mais sozinha, sabia que seus ouvidos não eram solitários nem alvo de ilusão. O cisne existia mesmo, de verdade, e parecia algo impossível de ser negado.

Sua vida lhe pareceu menos solitária, pois tinha o que compartilhar. Gostaria que as duas, ela e a amiga, pudessem ouvir juntas o canto do cisne. Mas isso nunca tinha acontecido. Elas o ouviam em separado, quando estavam sozinhas. E depois contavam com detalhes uma para a outra.

Até que um dia não deu para evitar. A vida realmente prega peças na gente. O cisne lhe apareceu de repente, lindo e real, mas não suave e amistoso como de costume. Estava irrequieto, arisco, movimentando-se muito. Emitia sons incompreensíveis, diferentes; seu canto parecia ter uma certa urgência, como que pressentindo perigo.

Foi então que ela se deu conta, pela primeira vez, de que aquele cisne negro era totalmente selvagem, e que ela não tinha poder algum sobre ele. Ela não podia controlá-lo. Mesmo sendo um companheiro de toda a vida, ela não o tinha tornado uma ave domesticada. Mesmo que por toda a vida ele tivesse lhe aparecido de surpresa, ou ainda que muitas vezes ela mesma tivesse ido procurá-lo, nunca havia sentido aquela sensação de urgência e perigo. Quase violência. E isso lhe deu medo.

A sensação de perigo lhe soava estranha, fazia suas pernas tremerem. Parecia que a terra se abriria sob seus pés numa grande garganta para então engolí-la. Parecia que iria ser tragada por uma onda gigantesca, só pelo prazer sarcástico do mar. O mais estranho é que a sensação de prazer se misturava ao medo. Líquidos escorriam por entre suas coxas.

O ventre, quente e trêmulo, parecia maduro. Pela primeira vez. Suores percorriam seu corpo e arrepios espalhavam-se por sua pele branca, enquanto ouvia o canto do cisne negro. Lembrou de como achava atraente o bico vermelho, agora mais vívido com a idade. Corada, intumesceu. Lembrou do toque das penas negras, desde a suavidade da pelúcia dos primeiros tempos. E o canto do cisne - trágico e assustador, poderoso e mágico - lhe pareceu mitigar a fome, pela primeira vez.

Agora, não mais sozinha. Não mais a amiga, com quem partilhava confidências. Mas com um homem, de pêlos negros como os do cisne, como os dela.

Quando ela experimentou ouvir o canto do cisne junto com ele (que, como ela, se abria voraz aos sentidos do mundo), percebeu que todo o silêncio de toda uma vida não era nada, perto daquela sensação de torpor e espanto. De canto compartilhado.

A vida lhe soou, mais do que nunca, como música. Sons intermináveis, quase infinitos. O cisne parecia crescer em tamanho, a cada som, a cada toque. Seu bico vermelho majestático lhe trazia mensagens de outros mundos, informações intraduzíveis, relatos além da terra que ela conhecia.

Ela sabia: conhecer os mistérios do canto do cisne era um privilégio. E regozijava sua alma feminina com isso, agora mais que nunca umaalma-em-comunhão. E agora ela também sabia que nada nem ninguém, nem ela mesma, poderia conter o selvagem desse canto.

Crescida de si mesma, depois desse dia, pôs-se a bater as asas. Descobriu que podia voar. Encontrou dentro de si o mesmo canto, a mesma voracidade pelo céu. E, acariciando os pêlos de seu púbis negro, prometeu nunca mais calar o bico do cisne que ardia por entre suas pernas, flamejante, querendo voar.

Rosy Feros

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