O homem prevenido

Não. Isso não era possível. Cara, estavam testando a minha paciência. Talvez não fizessem idéia de que ela andava menor que um pavio gasto. Bem, legal. Tenho uma certa tendência a desenvolver um carinho especial por quem gosta de colocar a própria integridade física em risco. Gosto de pessoas que não tem medo de correr riscos. E essa, pelo visto, não tinha nenhum. Perfeito. E eu, como sofro de uma absurda necessidade de me apaixonar perdidamente com certa frequência, resolvi que seria o próximo. É. O próximO. Eu não tinha o menor problema com essa coisa de sexo, era o amor da minha vida e contanto que me amasse e que me cuidasse e que me dissesse eu te amo no mínimo 183 vezes por dia eu seria o cara mais feliz do mundo. Fosse com quem fosse: uma mulher, um homem, um cachorro, um peixe ou uma samambaia. Só não curtia criancinhas. Amor, para elas é de outro jeito. Mas fora isso eu gostava de tudo. Diagnóstico clinicamente comprovado (assim todo mundo acredita, ou você vai negar que é o "dermatologicamente testado" do seu shampoo que faz você utilizá-lo?): gravíssima dependência química, caracterizando quadro de compulsão irreversível, pela expressão EU TE AMO. Pronto, fudeu. E já que eu já estava fudido mesmo, iria tocar para o pau. Meu caso era clínico, grave e sem solução. Portanto FODA-SE. Agora poderia me apaixonar todos os dias, sete vezes por semana, e por pessoas diferentes. Bacana. Primeiro caso de poligamia registrado no Ocidente. Cara, eu era mesmo muito foda. E o argumento era forte, e mais do que convincente: sou um dependente de amor. Você não fuma, filho da puta? Não toma doses cavalares de uísque com gelo? Não é viciado em deixar sua mulher esperando em casa, com os filhos, enquanto você fode com uma putinha qualquer dentro do carro da família. Sou doente, oquei, mas minha doença é limpa. Não sou um cafajeste. Apenas não consigo manter nenhum tipo de relação duradoura. E isso, venhamos e
convenhamos, está longe de ser um problema. Ao menos eu experimentava de tudo. E isso me fazia bem. Na verdae defendo a idéia de que essa doença deveria se espalhar como um câncer entre as pessoas, uma epidemia que não poupasse ninguém. Assim não haveria mais pessoas casadas, noivas, namoradas; todo mundo seria livre e solto e acessível e eu não iria mais precisar bater uma punheta quando chegasse em casa quando visse alguém extremamante foda na rua, e ao seu lado algué absurdamente desinteressante. É incrível como as pessoas mais fodas, interessantes e apaixonáveis atraem pessoas tão incrivelmente burras, medíocres e sem graça. Deveria haver uma lei que proibisse isso. Pessoas interessantes deveriam se apaixonar por pessoas interessantes, e serem correspondidas. E amadas. E queridas. E desejadas e cuidadas e ouvidas pelo resto dos seus dias. Pessoas medíocres que se fodessem. E que não venham se queixar comigo, isso é lá com a genética. Não tenho culpa pela mediocridade alheia. Mas, depois dessa volta do caralho, resolvi que ele seria o próximo. Que era um homem? Foda-se. Pelo menos pau haveria de sobra. Então comecei minha investida. Com essa minha natural sutileza de elefante branco. Sim, porque sem umas muitas doses de vodca e muitos cigarros - eu era dependente disso também, caralho -, sem esse kit de sobrevivência eu era capaz de muito pouca coisa. Quase nada. Olhar. As melhores cantadas eram a partir dos olhares. Então passei a olhá-lo. Na maior cara de pau do mundo. Ele, e mais metade da torcida da seleção brasileira. Tinha que atirar para todos os lados; alguém eu iria acertar. Investia tão pesado assim porque, desde que me entendo por gente, o Murphy me visita com frequência. O Murphy, aquele cara da lei. Pois é. Temos uma amizade tão íntima quanto indesejável. Mas amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito, dentro do coração. Então tá. Voltando: passei a olhar aquele cara na hora do almoço, na hora do intervalo, na hora da aula, na hora da prova. Em todas as horas. Eu estava apaixonado. De novo. Mas dessa vez era sério. Sabia que ele era o amor da minha vida, o que iria cumprir sua cota mínima diária de 183 eu te amo, e por isso me faria o cara mais feliz do mundo. Não, dores de garganta não são argumento válidos. Existem caneta e papel. Eu o olhava descaradamente. Ele se envergonhava. Passou a andar de óculos escuros. Caralho, que vontade de tacar uma pedra naquelas lentes pretas carérrimas e mandar tudo para o espaço. Droga de óculos escuros. Porra. Minha paciência estava no fim já. Não que ela fosse muito grande, mas óculos escuros já é demais. Eu precisava,
desesperadamente, me apaixonar, mas óculos escuros são inaceitáveis. O máximo da ignorância. Já estava até pensando em tentar dar um beijo no mendigo que dorme na calçada em frente ao meu apê, chegar com flores na mão e dizer que ele era o grande amor da minha vida, que se ele não me quisesse minha vida não teria mais sentido e que achava melhor a morte do que a vida sem ele. Credo. Ainda não cheguei ao fundo do poço. Mas é uma possibilidade. Gosto de ter cartas na manga, afinal um homem prevenido vale por dois. Eu tinha duas opções. O menino-amor-da-minha-vida que me ignorava atrás dos seus óculos escuros caríssimos e o mendigo-amor-da-minha-vida que não tinha dentes, fedia a pinga barata e também não me enxergava direito. mas ele não usava óculos escuros. Decidi então adotar uma técnica mais drástica. Agarrei-o pelo braço no meio de uma avenida infernalmente movimentada e disse-lhe se queria casar comigo, adotar filhos e construir um lar. Não, não que eu fosse gay, mas havia me apaixonado por ele. E o meu amor não consegue ver através de calças jeans e vestidos para saber o que existe ali embaixo. Tinha que me apaixonar por ele. De qualquer jeito. E mesmo que ele não estivesse apaixonado por mim, com o tempo ficaria. Eu já tinha conseguido coisas tão mais difíceis, que fazer um cara se apaixonar por mim através da convivência não seria nada. Tinha passado no vestibular. Conseguia ouvir música instrumental. Lia Saramago. Muitas coisas difíceis. Então, ele se apaixonaria por mim. Tinha até um filme assim, né? O cara sequestra a mulher e a prende em casa até ela se apaixonar. E quando ela pode fugir desiste. Diz que está apaixonada pelo seu sequestrador. Pronto. Está provado que amor à primeira vista é uma balela do caralho. O amor é uma costrução. Pode até ser à força, mas depois se torna genuíno. Verdadeiro. Até porque, num caso igual ao do filme, um sequestro, se não rolar a paixão um revólver é muito providencial. Tudo muito rápido. Bem, vocês já sabem o que eu fiz. Casar, ter filhos e um lar. Ele me olhou, me achando a pessoa mais estranha da galáxia. Marcianos deveriam ser mais normais do que eu. Riu. Abriu a carteira - recheada de dinheiros, cheques, cartões de crédito - e me deu seu cartão. Continuou a subir a rua. Olhei o cartão. Havia conseguido. Ah, o amor da minha vida. E, além de tudo, rico. "Psiquiatria e psicanálise".
Fiquei puto. Viado. Filho da puta. Havia me chamado de doido na cara, e andava calmamente pela rua. Eu estava muito puto. Abri minha mochila, tirei um 38 que me pareceu maior do que de costume e descarreguei todinho nele. Pelas costas. Milhões de tiros. Guardei-o de volta na sacola. Acabei esbarrando em alguém, e derrubei minha bolsa e alguns papéis. Uma mulher. Calças justas, camiseta. Saltos agulha. Ela se abaixou perto de mim e me ajudou a recolher meus pertences caídos. Linda. "Obrigado". Desci a rua atrás dela. Era ela. Tinha certeza. O amor da minha vida. Certifiquei-me de que o 38 estava na bolsa. Precisava de balas. Sabe como é. Um homem prevenido vale por dois.

Arnaldo Delgado Sobrinho

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