Tabuleiros
A Jorge Luiz Borges
Um homem, desses que moram a vida inteira em um casebre, sonhou que Deus lhe dizia que a vida poderia ser dotada de aventuras e prazeres inenarráveis. Quando acordou não se viu no Rio ou em Ravena, nem teve a impressão de que algo infinito tinha se perdido ou que a revelação era por demais grandiosa para a sua pequena condição de homem. Pelo contrário, cada palavra pronunciada tinha-se entranhado na carne de seus afetos e, agora, engrandecido pelo que sabia, já não concebia morar em brejo de lamas eternas, sempre ocupado com a caça, para a sobrevivência. —Deus sabe o que faz, intuiu consigo e a partir daquele momento dirigiu-se com seus andrajos para a cidade mais próxima para relatar aos demais a revelação divina e toda a euforia e o encantamento que dela advieram. No lugarejo, entretanto, não encontrou quem lhe desse qualquer atenção, nem foi ouvido pelos transeuntes apressados que sequer tomaram conhecimento de sua existência. Com o fim do dia, a noite caiu subitamente como um grande tabuleiro de trevas e o homem descobriu que apenas um bêbado lhe dera ouvidos e que continuava só e em um mundo sem amor e que a revelação gloriosa com que tinha sido contemplado apenas despertara em si uma dor absurda, mesclada de indignação e revolta. Então adormeceu e Deus pediu-lhe em um sonho que esquecesse tudo que ouvira e quando acordou sequer lembrou que algo infinitamente assombroso se perdera e assim viveu o resto de sua vida catando os moluscos na lama do brejo onde nascera, confortado e protegido pela impossibilidade de compreender a si e ao mundo.
Francisco Orban