Lua Minguante

Ele acordou desnorteado. O corpo enroscado como um feto buscando a proteção materna. Sentia um gosto amargo na boca e um vazio excruciante no peito. A pele de todo seu corpo ardia. Um ardor pungente de quem havia mergulhado em ácido. O estômago pesava como se houvesse acabado de devorar um gigantesco animal. Tentou abrir os olhos, tarefa impossível diante de tanta claridade. Resolveu esperar. Talvez alguns momentos de reflexão não lhe fizessem mal e conseguisse pôr as ideias em ordem.
A confusão se instalara em sua mente. As lembranças eram desconexas. Mesclavam-se imagens, sons, cheiros, gostos e sensações, desnorteando-lhe os sentidos. Impossível organizar os pensamentos. Quanto mais se empenhava em recordar, mais as coisas se embaralhavam.
Seus músculos se encontravam tensos, enrijecidos, como se há muito não se movesse ou, pelo contrário, houvesse realizado alguma tarefa hercúlea. Com esforço se esticou e tateou seu leito como se buscasse por respostas. Mas não foi a maciez de lençóis o que encontrou.
Suas mãos sentiram o toque áspero e a umidade extremamente reconfortante da terra fria. Permitiu que ela se ajeitasse entre seus dedos, enquanto deslizava as mãos como que a acariciá-la. Esparramou-se. O chão úmido, de certa forma, lhe preenchia a solidão do corpo. Da alma. Deixou-se ficar sem pensar em nada por alguns minutos. Desejou esvaziar a mente por completo, daquelas cores extravagantes, daquelas imagens desconexas.
Levantou-se trêmulo. Suas pernas não o obedeciam e ele se percebeu ferido, lutando contra a força da gravidade que insistia em colocá-lo de joelhos. Não sabia de mais nada. Onde estava, como fora parar ali. Apoiou-se em uma árvore com dificuldade e lentamente abriu os olhos. Olhou o mundo inteiro que se abria à sua frente e não se reconheceu.
Levou as mãos à cabeça ao sentir uma pontada brusca. Havia ali uma ferida aberta, o sangue já estancado e pisado. Foi quando notou que suas mãos estavam sujas, muito sujas, e suas unhas preenchidas por massa escura. Estudou atentamente... algumas partículas de terra, lama e algo indecifrável. Talvez sangue. O desconhecido cheiro de suas mãos era entorpecedor. Teve ânsia de levar a mão à boca e limpar as unhas com os dentes. Mas resistiu. Sob as unhas, só poderia haver sujeira. O que mais?
Buscou insanamente por um resquício de lembrança. E o que tinha era muito pouco. A noite pouco estrelada, a lua inacreditavelmente cheia e imponente. A cabeça girava e o estômago a acompanhava. Uma ânsia de vômito o invadiu e ele desejou poder vomitar. Mas não tinha forças nem para isso. Não sabia de onde vinha aquela sensação de peso no estômago, não se lembrava de ter comido nada. Na verdade, apenas de uma única coisa tinha absoluta certeza: precisava encontrar uma saída daquele lugar.
Estava no interior de uma mata quase virgem, não fosse por algumas plantas e árvores arrancadas pela raiz. Uma parte da mata estava completamente destruída e pela aparência das plantas, ainda verdes, a destruição havia sido recente. Seria preciso uma força descomunal para fazer aquilo. Estremeceu. O que quer que fosse que tivesse passado por ali, talvez ainda estivesse por perto.
Caminhou sem saber ao certo para onde. Os pés queimavam e doíam como se houvesse andado a noite inteira. Seguiu sempre em frente até não mais sentir os pés descalços, ensanguentados pelas feridas que iam se acumulando.
As linhas de seu jovem corpo, dos músculos desnudos pela roupa em frangalhos, estavam tensas, cada vez mais enrijecidas. Ele passou as mãos pelo rosto para livrar-se do suor e aspirou profundamente. Novamente o desejo de lamber as mãos, os braços, seu corpo todo impregnado por aquele odor. Travava uma luta interior. Queria lembrar. Queria esquecer.
A cada passo que dava sua mente se preenchia de mais imagens confusas, que cresciam em profusão. Algumas surgiam à sua frente como por encanto.
Também lhe vinham à memória alguns sons. Distorcidos, inarmônicos. Talvez vozes. Ou gritos.
Um rosto assustado, como a implorar pela vida.
Uma voz de mulher num choro sentido, desesperado.
Um homem enlouquecido, seu ódio estampado no rosto distorcido.
Um grito de criança.
E aquele gosto que ainda trazia na boca... misto de sensações, início ruim, mas saciador, bom. Ele lambeu os beiços, e aspirou fundo o perfume que vinha de suas mãos escurecidas pela substância desconhecida. Começava a se lembrar... daquela luz repentina e fantasmagórica, daquela dor descomunal de suas carnes sendo rompidas. E das sombras. Muitas sombras e vazios.
Sua mente se aclarava. A cada passo uma lembrança. A cada passo o horror se apoderando de todo o seu ser. Horror de seu olhar refletido em tantos olhares, horror dos atos que agora tinha absoluta certeza, cometera. E o desprezo. Pelos sentimentos opostos que nutria. Culpados, vergonhosos. Mas de intenso prazer e satisfação.
Não!
Queria esquecer. Precisava esquecer! Por que se esforçara para lembrar? Caminhava agora com passos mais firmes, sem saber ao certo para onde. O peito nu não sentia frio, não sentia nada além de dor, mas uma dor muito mais profunda que as causadas pelas suas feridas, pelas valas arranhadas nas pernas, no peito, no rosto, por onde o sangue em algum momento daquela noite maldita havia escorrido.
Estava só. Infinitamente só. Não havia com quem pudesse compartilhar aquela dor. Embrenhava-se cada vez mais no vazio que agora preenchia seu peito. Sua alma. Poderia suportar qualquer coisa, o ódio, o desprezo, a perseguição, mas não poderia suportar sua consciência. Acusando, apontando, e relembrando-o a cada instante daquela parte de seu ser que desejaria esquecer. Sua consciência o culpava, como um gigante inquisidor.
Mas era só por uma noite. Nos outros 364 dias era uma outra pessoa. Será que não haveria saída daquelas sombras? Estaria marcado para sempre?
Começou a perceber ao longe as luzes de uma cidade. Sua cidade. Afastou um galho. Desvencilhou-se de outro. Seus pés feriram-se um pouco mais na ânsia de sair logo dali. Mas não se importou. Estava livre. Deixava para trás aquelas horríveis lembranças. Precisava continuar, precisava sobreviver e aceitar o seu destino. Aquela não era a sua vida, era apenas uma parte dela. Um apêndice. Que tinha de suportar. Até a próxima lua cheia. Quando se transformaria em lobisomem novamente.

Flávia Côrtes

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