Desaparecida

                Ansiosa, roendo as unhas, não conseguia mudar a dinâmica do tempo, muito menos divisar a imensidão da transformação que o simples toque de um botão poderia causar. Envio ou não envio, escrevo ou não escrevo outro e-mail? Não conseguia concluir nada, prever, enxergar, sonhar, estava perdida em uma divisão fractal de pensamentos, nada parecia indicar um caminho ou a indicação de todos os caminhos possíveis e imagináveis atordoava tanto que chegava a amaldiçoar sua capacidade de imaginar hipóteses. Rolava na cama pensando. Poderia ser o apocalipse deflagrado por uma concordância verbal infeliz, mal feita em um momento de angústia e ânsia, ou quem sabe um "i" ao invés de um "e" escrito como que se pronuncia, tenha sido o golpe fatal. Ela não sabia, só ansiava, ansiava sem movimento, sem solução, sem pressentimento... Então, depois de enrugar todos os vincos possíveis do lençol, sentia-se tão imensamente sensível que o simples toque das roupas lhe provocava imenso desconforto, decidiu que faria algo, que não poderia ficar passiva apenas se degradando em possibilidades fractais de pensamentos-possibilidades. Ergueu-se na escuridão, (pois as luzes frias fluorescentes e econômicas de sua casa ecologicamente correta pareciam uma espada Jedi prestes a arrancar os olhos das órbitas). Sentiu o gelo do piso de ardósia sob seus pés, percebeu todas as rugas do piso rústico e todas as calosidades dos seus pés de mulher que já desistiu dos cuidados simples com a beleza. Qualquer toque, qualquer simples reentrância eram uma acidente geográfico digno de ser desenhado no caderno de mapas da escola, a sensibilidade pululava em seu cérebro restrito que parecia insuflado, grande demais para seu crânio coberto de negros cabelos mal penteados.

                Após encontrar o pequeno notebook negro-brilhante, ligou-o na tomada, e começou a ouvir os zunidos tão familiares, os bocejos da pobre máquina acordada na noite quente de um janeiro tropical. Viu ele abrir os olhos, sonolento, piscar seu leds remelentos, exaustos de um dia de muita escrita. O bocejo, PI-RI-RIM... e acendeu-se a tela!!!! A tênue luz cinza do micro-notebook invadiu a sala e a retina, lembrou-se de Sansão sendo cegado por uma flecha incandescente na cena de um daqueles filmes antigos que passavam na semana santa.

                Aquele segundos de inicialização do computador pareciam a eternidade, imaginou Deus criando o mundo, " e primeiro foi o verbo, faça luz e a luz se fez", pensou, "que estilo minimalista, se fosse eu diria, "Faça-se a luz esplendorosa que iluminará este mundo de breu..." Puxa, bem que Deus poderia ter primeiro dito um adjetivo ao invés de um verbo, adjetivos são bem mais inócuos e poéticos, verbos sempre demandam tempo e ação, já adjetivos são estáticos, decorativos, as vezes fúteis e desnecessários...", quando brilha a tela do navegador "senha" ela digita trêmula a senha "librisscriptaest" (achava sonhar em latim mais chic). Entra, ansiosa trêmula, na caixa de entrada.

"nenhuma nova mensagem"

                Então algo de diferente começa acontecer.

                Surge um formigamento nas mãos. Seus olhos começam a embaçar, ela começa a sentir uma estranha sensação nas pontas dos dedos, um amortecimento semelhante ao que sente quando escreve uma noite inteira sem parar, mas dessa vez é diferente, mais forte, ela tenta abrir "nova mensagem", iria enfim escrever alguma mensagem para pedir explicações, pois afinal merecia alguma consideração (ou não?) ou simplesmente escrever em maiúsculas um grande "VAI TOMAR NO CU SEU EDITORZINHO DE MERDA"... mas não consegue, ela em vão tenta imprimir força ao seu piano literário, mas nada, é como se os dedos atravessassem o teclado, ela consegue então focar os dedos, não tem pontas!!! Vê apenas a falange proximal já evanescente da mão esquerda e o coto do punho da mão direita... Tenta em desespero se tocar, mas não tem mais mãos, é apenas transparência, pensa... rápido, um pensamento, uma frase, um interjeição que resuma isso? "Fudeu", pensou “Puxa, meu apocalipse pessoal, meu fim, assim como o Gênesis um único verbo, e ainda por cima no passado, pior, uma narração de realismo fantástico, estou desaparecendo em pleno ar!!!

                Enquanto pensava em um forma de adjetivar tudo isso, olhou para seu corpo, era apenas um crânio com uma face pálida e uma boceta flutuante no vazio, “E agora? Ouviu o barulho da sua correntinha de quartzo rosa cair no chão enquanto o pescoço desaparecia. Quando foi abrir a boca para gritar por socorro, não tinha mais boca, olhou para baixo com o único olho que ainda sobrava e estava lá, ainda impávida, a boceta flutuante, pensou "isso amiga velha" resista!!!! Seu último pensamento de resistência foi "Na próxima quero vir apenas puta, não mais escritora, já que é para ser fudida e mal paga!”.

.....

                Então ouviu-se a televisão:
                "... Os peritos da polícia criminal da cidade do Rio de Janeiro ainda não conseguem explicar o misterioso assassinato da professora de português que teve seus órgão genitais arrancados de forma cirúrgica e deixados ao meio da sala do seu pequeno apartamento no bairro Piedade.
                A professora não tinha muitos amigos, não foi vista no último mês, desde que havia sido demitida da escola particular que trabalhava em Laranjeiras. O estranho caso intriga toda a polícia criminal do Rio de Janeiro, pela forma insólita que a vagina da vítima foi encontrada. Exangue, sem sinais de violência e as únicas impressões digitais encontradas na peça foram as da própria vítima. O principal suspeito é o Editor Ricardo Fernandes, com quem mantinha contato via internet regularmente."

Ana Laura Kosby

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