A Viagem

O rio corria ao lado da pista, suave, entre rochas claras e num murmurejar contínuo; se ainda não era a foz, estávamos perto. Por outro lado, a estrada que nos guiava ao final daquele rio era bem acidentada. Havia rumores de que ali, vez em quando, quebravam-se molas e eixos. Certa vez passávamos por lá e vimos um carro com o carter furado, enquanto os ocupantes, inermes, nada podiam fazer senão esperar pelo socorro que nunca vinha. As pedras eram altas, tínhamos de contorná-las lentamente. O rio? Ah, este corria célere ao mar, ali estava nosso tesouro. Ali repousava nossa viagem, nosso sonho. Planejávamos há meses aquilo e só agora pudéramos fazer o percurso, não sem antes discutirmos quem faria o quê, e quando. Como, já o sabíamos. Para isto, trazíamos os instrumentos adequados e as ferramentas, devidamente afiadas. Enfim, há algumas horas atrás, tínhamos verificado tudo, três, quatro, até cinco vezes. Nossa disciplina tinha algo de militar no sentido de que não admitíamos que pudéssemos falhar. Afinal, tudo dependia de como acharíamos o que procurávamos de maneira tão ávida; dali talvez dependesse nosso futuro, se não imediato, pelo menos a médio prazo (a longo prazo seria exagero, até porque não dispúnhamos de meios suficientes).

– Tem certeza de que trouxe...

– Você definitivamente não confia em nós.

– Veja bem, não disse isto.

– Nós somos muito meticulosos. Está tudo devidamente encaixotado, ordenado e arrumado. Não nos pode acusar de que somos descuidados; checamos cada item quatro, cinco vezes.

– ...Eu sei, mas, em se tratando de algo assim, deste porte, é preciso saber de que tudo consta nos documentos, devidamente autorizados, etc.

– ...Novamente, você nos subestima. Acha que não estamos a par de tudo o que se deve fazer para tal viagem? Temos tudo devidamente catalogado. Imagino o que seria disto, se não estivéssemos tanto senso de ordem; coisa de que vocês, com seu comportamento, jamais se preocupam em fazer.

A moça, com voz bem dirigida, suave e melódica, colocava as verdades em pequenos socos, como que fosse um lutador encaixando seus golpes para demolir e minar nossas resistências, para que ao fim e ao cabo, nos déssemos conta de que tal empreendimento dependia mais deles do que de nós, realmente, cheios das vicissitudes de homens antiquados, perto deles, tão mais avançados do que nós em costumes e maneiras. Esquecia-me de tal liderança, mas eles não podiam esquecer de que nós éramos parceiros e se tal coisa se realizava, era também graças à nossa disponibilidade e ao veículo que ocupávamos, devidamente squestrado de uma base militar de maneira heróica.

– Temos de lembrar sempre que somos parceiros nisso. Não há como recuar agora.

– Não mesmo.

Quem respondia era um deles, cabelos aloirados e dentes um pouco salientes, olhos de um verde que não era um verde natural, mas algo de mato puro, ou de uma folha banhada por luz detrás, num final de tarde. Sua companheira de viagem e aventura não era menos encantadora: loira, pequena e mignon, mantinha um silêncio taciturno, como se quisesse achar alguma falha em nosso plano mirabolante qua havia funcionado até ali, sem atropelos, exceto pela furiosa perseguição dos militares em nosso encalço por horas após o roubo do veículo anfíbio, claro. Nós os despistáramos graças às artes e manobras dela, a calada companheira de nosso pouco falante aventureiro. Iam dois de um lado e o casal, do outro lado, mãos dadas.

Mantinha o curso, devidamente orientado por eles, seguindo ao paralelo do rio que cada vez mais, acalmava-se enfim, chegando aos mangues e já com um pequeno pântano se desenhando com suas árvores de raízes largas e respirantes, suas largas folhas onde zumbiam abelhas ainda e de onde pendiam várias espécies de bromélias, orquídeas e flores de característica de catos, resistentes ao que faltasse de água mesmo diante de tanta água salobra que preenchia os espaços entre as árvores. Um deles fêz um sinal, era o local combinado, devíamos parar ali. Ao longe, chegávamos a ouvir o som de algum helicóptreo, talvez tentando rastrear nosso caminho com câmeras de resolução infravermelha; isto, agora, já não tinha importância, porque apesar de tudo, contra tudo e contra todos, chegara ao final nossa aventura; havíamos cumprido nossa parte. Agora eles haviam de cumprir a deles, esperando...Esperando os Outros. E estes Outros sim, é que teriam de cumprir de maneira mais fiel ainda nosso trato feito entre tantas negociações e tratativas, em conversas longas e complicadas, por meios cifrados e usando sempre de muito sigilo e segredo. Mesmo assim, havíamos sido descobertos de certa forma e o que fizéramos fora só jogar areia nos olhos de nossos perseguidores que, é claro, nos confundiam com, talvez, terroristas ou bandidos de mercadorias proibidas. Dessa maneira, jamais haviam de suspeitar deles e dos Outros, estes sim, tão mais importantes que, se fossem descobertos, prometiam não poupar esforços para eliminar até a última testemunha de tais fatos, fosse como fosse. Temerosos por tal ameaça, havíamos nos camuflado. 

– Pare aqui.

– É suficiente.

– Desligue o motor. Eles virão.

– Agora é questão de tempo. Já fomos localizados. Os Outros sabem que estamos aqui.

O silêncio interrompido vez por outra por um coaxar de sapos e grilos e alguma cigarrinha que insistia em pedir chuva era pesado. Um manto de estrelas nos fazia lembrar de que a noite chegara e muitas delas eram pontos bruxuleantes, de diversos tamanhos e cores, cintilando inicialmente para se tornarem lindos diamantes no breu da escuridão que contornava as águas que se acalmavam agora.

Eles puseram seus óculos; sinal de que os Outros haviam chegado.

E os Outros vieram buscá-los. 

Flavio Gimenez

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