Tempo para pensar na morte
Teve tempo para pensar na
morte, então pensou. Sim, o sono da totalidade. Estava na praia
do Leme, com o mar na altura dos seus joelhos, as ondas se quebrando em
torno.
Que espuma tão
branca, refrigério do azul! E a pedra imensa e próxima,
uma escultura, seu peso redondo!
Um momento para pensar na morte: então pensou. Morte, cadela
de estimação, bicho enorme, gordo e sorridente, língua
de fora, arfante. Morte, cadela amiga.
Como é que uma coisa dessas tinha acontecido? Sem tempo para
pensar na morte, até este momento?
Bem, talvez não fosse exatamente assim, concluiu, entre as ondas.
Claro que tinha pensado na morte.
Na adolescência,
ah, seguramente sim. Só que esqueceu.
E agora, no meio do
azul, lembra. Agora que achou um bom momento para pensar na morte.
Abaixa-se para molhar o
corpo todo na força da água, e pensa nas noites que passava
sem dormir, na adolescência, imaginando que podia morrer a qualquer
momento. Fobia da morte.
Certa vez, mordida por um
besouro, teve certeza de estar com doença fatal, a de Chagas. Morreria
em poucos anos, coração dilatado.
Só não entendia
por que, na idade madura, de repente era como se um século tivesse
transcorrido sem ela pensar na morte. Ou até mesmo como se não
pensasse nunca.
E agora, de onde vinha esse
surto, o jubiloso pensamento da Morte-Cadela? Quando, já acomodada
na idade madura e em sua solidão sem dor, tudo indicava que não
morreria nunca?
Mas o momento, agora, resgatava
o conhecimento da morte.
Na praia, num instante perfeito
de espuma, azul e frescor, então tornou a pensar. Ora essa, era
apenas um processo natural, a morte como as coisas que acontecem quando
devem acontecer. Como parar de menstruar. Um dia, simplesmente parou.
Antes, costumava ler com pavor bulas de remédios. Diziam que,
nesse período, o da menopausa, a mulher costuma ter problemas os
mais variados. Até mesmo ataques de esquizofrenia. Além dos
comuns calores e tudo mais.
Mas ela não
teve nada, apenas parou de menstruar. Simplesmente, como se morre.
Abaixou-se outra vez, deixou o mar molhar novamente seu corpo. Era
bom. Muito bom.
Foi quando se lembrou
de ter lido, talvez numa biografia, alguma coisa sobre a morte de uma escritora
inglesa. George Eliot, talvez, não tinha certeza. Mas sabia que
ela morreu em pé. Levantou-se da cama, agarrou-se a um portal e
morreu.
Naquele momento, erguendo-se
da água, pensou que, quem sabe se ela também não poderia
morrer em pé? Podia dar sorte, ou fazer o necessário esforço,
e ser assim.
De volta da praia, em seu
apartamento, tomou um banho de chuveiro, enfiou uma roupa leve e ficou
curtindo a sensação boa no corpo, a euforia que daí
vinha.
Alguns instantes depois, num impulso repentino, telefonou para um amigo.
Ele atendeu e, de estalo, ela lhe disse que, quando morresse, queria ser
cremada. Como se fazia, para conseguir isso?
O amigo riu e respondeu
que não se preocupasse, ele cuidaria de tudo, se ela fosse primeiro.
O que era provável, sendo ela mais velha, foi o que entendeu.
Era um amigo que costumava ligar sempre que morria alguém, para
lhe dar a notícia. Mas, fora isso, era uma pessoa muito doce, pelo
menos aparentemente. No fundo, claro que não, mas todo mundo é
assim mesmo.
Conversaram um pouco sobre
outras coisas, depois desligaram. Mas ela não sossegou. Tinha de
saber como fazer.
Procurou na lista telefônica e encontrou o número
de uma funerária que, pelo nome, achou simpática: “Estrela
da Manhã.”
Em menina, gostava de acordar muito cedo, quando ainda estava escuro,
para localizar no céu uma grande estrela, a D’Alva.
Sim, “Estrela da Manhã,” podia ser aquela. Atendeu um homem
de voz neutra e ela repetiu a pergunta que fizera ao seu amigo: como se
fazia para ser cremado?
- Essa pessoa ainda está
viva? - perguntou o homem.
- Está sim - respondeu,
com um leve susto.
- É preciso que,
antes de morrer, deixe uma declaração passada em cartório
de que quer ser cremada. Se não fizer isso, quem decide é
a família. Com a autorização, seja do morto ou dos
parentes, nós nos encarregamos de tudo.
— A cremação
é aí mesmo? - tornou ela a perguntar.
— É, temos um local
para isso. Primeiro, o corpo é posto no caixão, há
um velório. Depois, é feita a cremação. Cremamos
o corpo dentro do caixão.
Ela disse que voltaria a
entrar em contato, agradeceu e desligou. Tornou a telefonar para o amigo.
— Se você cuidar da
minha cremação, faço um testamento e lhe deixo alguma
coisa em troca do serviço.
O amigo riu muito. Mas a
intenção dela era séria, pretendia mesmo, naquele
momento, fazer o que dizia.
Só que, como todo mundo, andava tão ocupada!
Nunca havia tempo para nada e então duvidou se, algum dia, teria
a paciência necessária para se deslocar até Copacabana,
ir ao cartório onde já tinha firma e mandar preparar o documento
de autorização.
Entre outras coisas, ali não havia vaga para estacionar, era
preciso ir de táxi, o preço do táxi tinha aumentado
e assim por diante.
Quanto à possibilidade
de abrir uma firma em outro cartório... Ora, nunca conseguia fazer
as coisas mais banais do cotidiano.
Então as semanas se
passaram, ao bom tempo do outono sucedeu-se um inverno chuvoso, ela parou
de ir à praia.
Mas logo chegaria
a primavera, pensou, tantando consolar-se. E ela voltaria ao Leme (não
existe azul como o de lá) , e pegaria umas ondas pelo corpo.
Então, agora que
tinha começado, talvez encontrasse lá outro bom momento para
pensar na morte. Mar e morte, parece que combinavam. Suas cinzas poderiam
ser lançadas no mar do Leme, junto da bela pedra.
Enquanto isso, decidiu preparar-se.
Comprou e foi lendo aos poucos uma tradução do Bardo Thodol,
o Livro dos Mortos tibetano.
“Ó nobre filho, agora
chegou o que se chama morte. Estás partindo deste mundo dos vivos,
mas não és o único; a morte vem para todos. Não
te apegues, por gosto ou fraqueza, a esta vida. Mesmo que te apegues por
fraqueza, não tens o poder de permaneceres aqui.
Ó nobre filho, quando
teu corpo e tua mente estiverem separados, deverás ter vivenciado
o vislumbre da Verdade Pura, sutil, brilhante, viva, deslumbrante, gloriosa
e radiosamente medonha, parecendo uma miragem, que se move numa paisagem
na primavera, num contínuo fluxo de vibrações.
Não te assustes com
isso, nem te aterrorizes, nem temas. Trata-se do esplendor de tua própria
verdadeira natureza.”
Sonia Coutinho