CRUEL REVELAÇÃO

                  a Octavio, pa´ que me crea

Tinha que ter um muro ali. Era necessário um muro enrugado de velho, amaldiçoado por um vento sem idade, dramaticamente esquecido, tomado pelo verde velho em cada dobra, cemitério de plantas sem importância nascidas da urina depositada todas as noites por bêbados que urinavam monotonia de resto. Mas um muro de alma dramática e doloroso de abandono, um muro copiado das mais altas fantasias de homens que sofrem e necessitam um muro para chorar, em qualquer lugar indefinido. E entretanto, apesar das dores, o muro inexistia porque eram altas as paredes dos edifícios, altas e sem cor de tragédia, além de não estarem num deserto onde as lágrimas não precisassem responder questões. Era isso o que poderia estar lhe passando pela cabeça e nem supunha que estava pensando tão somente sobre a necessidade dos muros, ele que se sentia muito mais machucado do que nenhum muro velho e dramático poderia suportar. Ele que deveria estar pensando em atos concretos, em respostas decisivas, em um muro concreto onde pudesse tão somente vomitar. Pois era isso, o nojo, impossível não ter nojo. Nojo filho-da-puta e total, porra como era possível que essa desgraça acontecera, maldita hora que entrei naquele apartamento e fui encontrar tudo assim, tudo desmoronando na minha vida com 19 anos, viado-filho-da-puta, não tem vergonha na cara de fazer isso com a família e com esse irmão justamente. Assim justamente no meio do ódio ele desceu do ônibus e com um ódio de cor verde que nunca tinha imaginado vomitou suando em qualquer lugar onde toda gente do bairro cagava quando tinha pressa de ir ao centro. Sim, cagavam, todo mundo cagava em todo mundo. Mas eu vou mostrar pra ele, ah isso vou, vou dar uma cagada muito maior que a dele, meu irmão, ex. Em cima de mim não.

E se encontrou com ela, sua amiga apesar de tudo, apesar de ser tão mais velha e tão triste e tio branca, gorda. Mas ela era doce, ela ouvia, ela o amava em silêncio, ainda que seu próprio irmão fizesse o que fizesse. Sim, ela ia na igreja, daí vinha sua doçura. E foi aí, no seu ombro cheio de doçura, que ele se depositou, e não conseguiu chorar. E eu que gostava tanto dele, meu irmão, claro, como é que eu não ia gostar do meu irmão mais velho e respeitar ele porque ele é um cara legal sim. Mas isso não posso admitir, então você acha que é possível um negócio desse, com tanta menina por aí? E depois tinha aquele outro cara, não, não conheço, não sei donde ele é, não sei quem é. Eu fui lá visitar meu irmão. Estava assim na sala, eu sentado esperando porque ele estava no quarto, sabe, ele anda com muitos problemas ultimamente, parece que umas coisas lá do trabalho dele, sei lá, ele nunca me diz direito. Então, depois que o rapaz foi embora, ele demorou um pouco pra sair. Era muito branco o irmão, sem pelos, tinha um ar de irmão mais velho, tinha ar de criança talvez nos olhos, mas era também um pouco tímido ou apenas estava tímido no momento, chegou dizendo tudo bem mas engolia em seco como preparando-se pra dizer algo que não gostaria e estava apenas de cueca. É muito legal meu irmão, voutecontar, é mesmo, acho.

- E você já resolveu o negócio do empréstimo lá no serviço?

- Não, ainda não, aquilo tá fogo, você sabe como aquela gente é, te chupa o sangue quanto pode. E então me falou tudo, assim de supetão, eu nunca na minha vida poderia pensar, me chamou de amigo, sim chamavam ele de mariquinha quando era pequeno. Lúcia, Lúcia, qué queu vou fazer?

Lúcia abraçava-o e o que parecia um momento qualquer de amor queimava como fogo assim de percorrer a espinha, sair pelos pelinhos do braço e ela respirava fundo e forte e porque sentia quanto o amava ma s sim sabia que era velha e feia, gorda. E só os pelinhos do braço podiam dizer o que era aquele amor que a fazia vergar de pesado. Nunca em minha vida amei assim, ela lhe disse e ele ficou um pouco parado, tanto que ela teve medo do que dissera. Eu já sei faz tempo , Lúcia, não se preocupe. Eu sei que sou velha e feia gorda, porém te amo, é isso, assim tão simples de dizer mas foi tão duro pra mim o tempo todo te vendo lá no escritório e nós tão amigos mas eu sentia mais do que amizade. E começaram assim de mansinho, ele afundando no pescoço dela como um nenê e ela arfando no começo devagarinho, depois crescendo, tomando impulso, partindo como uma locomotiva e já depois levantando vôo com o mesmo esforço de quem puxa tudo pra fora, ganha tudo, ganha os céus e dispara na aventura, aventura e amar como te amo é impossível, não, não se sinta obrigado quer dizer, não faça se você não tiver, que eu te amo, de qualquer jeito para mim não importa. Não não tou fazendo obrigado, te juro, você sempre foi minha melhor amiga, uma verdadeira mãe pra mim, depois a gente é homem e mulher, não é? E sem perceber ele foi lembrando de sutis lições aprendidas em filmes, ouvidas em conversas no bairro e sim, era a primeira vez. Não, nem tenho mais medo da igreja, do que fala o padre lá, eu só sei que te amo. Você é meu primeiro homem, foi sempre pra você que eu fui me guardando. E ele se sentiu pela primeira vez a estranha textura dos seios de mulher e experimentou movê-los e lhe parecia tudo muito novo, a maneira como as carnes iam e resvalavam e sempre pensara que os seios eram uma coisa assim muito dura pelo menos quando elas gostam mas veja só, eles caem, como que desaparecem e ficam só um pouquinho mais grandes que um peito de homem e experimentou descer a mão e ela já estava chorando de alegria e foi então que ele se deu conta que de verdade estava fazendo tudo pela primeira vez e que tenho uma responsabilidade, afinal ela é virgem. E eu também sou virgem, eu também. E então, vou te falar uma coisa, Lúcia, eu nunca fiz, você entende. Sim, sim, tudo, não me deixe e suas mãos agarravam os cabelos dele e pressionavam  assim como quem não pressiona e a cabeça dele foi descendo e ele sentiu a responsabilidade mais do que nunca e pensou ao mesmo tempo que enfim vou fazer isso afinal mas descobriu que era uma verdadeira responsabilidade. E lhe nasceu uma pontinha de medo, eu não vou conseguir e em assim de repente já era puro medo, medo. Com os olhos muito abertos de susto por que não estava brincando, como era possível a gente Ter tanto medo assim de uma vez só e depois fechou os olhos e não queria demonstrar e quis tirar-lhe a saia que estava dura de sair, para tentar esconder o medo e terror que lhe tremiam as mãos e ela não se agüentava e ele se imaginava fazendo feio. Não, eu sou teu amigo, não posso, tua amizade é muito importante. E abraçou-lhe outra vez o pescoço flácido, para se esconder.

Foi assim: o irmão sentou-se no chão, na frente dele.

- O quê que houve?

- Tenho que te dizer uma coisa, faz tempo que eu queria. Você é o irmão de quem mais gosto, a gente é muito amigo.

E lhe disse. E não era possível, ele se afundou na cadeira e viu o irmão sentado no chão muito pequeno e não sabia se corria ou esmurrava o irmão mas apenas afundou mais e mais na cadeira e sentiu-se como se tivesse recebido um soco de verdade. Assim, zonzo, os ouvidos zunindo, não sabia onde estava, a cara ficou cheia de suor frio assim de repente mas não quis chorar porque não conseguia e não adiantava mesmo.

- Qué que você faz? Faz quanto tempo?

E o irmão lhe disse tudo, mas tremia enquanto falava. Na minha família tem um viado, não posso acreditar nossa senhora. Mas você precisa se tratar, é só isso, nós vamos te ajudar. E nada; tudo, lhe dizia o irmão.

Pois foi assim mais ou menos Lúcia. Me deixa mais triste essa música do Roberto, as flores do nosso jardim que murcharam. Deixa eu te falar tudo, olha eu tou com vergonha mas você é minha amiga e não tenho segredo nem em te dizer isso porque eu posso te dizer tudo, não?

Seria talvez de noite. Olhares assim nos cantos, gente em pé por todos os cantos e silêncio. Era como um cenário antigo cheio de fumaça dos cigarros ou muito conhecido não se sabe de onde, com exceção de que lá dentro do salão havia o filme, se podia ouvir os atores falando em inglês, era uma comédia ou quem sabe um dramalhão moderno, quem poderia saber no meio de todo aquele silêncio pesado de olhares? Parecia que todos fumavam, os cigarros e a fumaça estavam assim tolamente presos no ar nervoso pois todos procuravam todos. Os olhares eram fortes, entretanto, desnudavam. Estavam ali havia horas, minutos? Ninguém sabia. E eles se encontraram então, depois de se enfastiarem procurando, e estavam um pouco enfastiados um com o outro mas também sozinhos. Foram para o apartamento, eu também tenho a chave do apartamento não sei por que, Lúcia, e não sei por que me deu vontade de ir lá, eu tava na centro mesmo. Ainda vejo ele saindo do quarto assim, de cueca, depois que o outro cara foi embora. Mas isso eu não vou dizer quê.

Acho que gostei, não é um abacaxi não. Ele, entrou no banheiro do cinema depois que viu o filme, sim bonzinho mas tem outros melhores mas tá bom pra passar o tempo. Quando começou a mijar percebeu o cheiro perfurador de urina velha e mirou as paredes de azulejos sujos. Sentiu o de sua própria urina subindo-lhe. Mijou muito. E o cheiro do sabão desinfetante. Subia, as narinas se inflam, ele olhou o vazio dos mitórios, viu o mijo amarelo subindo-lhe o cheiro. E foi devagarinho, ou rápido com aquele cheiro de sabão amarelo de espuma e sentia que crescia, o cheiro sim era forte ou então sentia aquele prazer amarelo e borbulhante, bom, crescente, violentador, grande, imensamente urina que corria subindo-lhe nas veias. E foi se acelerando o ritmo do mundo que nascia do meio de suas pernas. Invadido, não pôde mais suportar os segundos onde a reviravolta o levou pra longe não muito longe sim altíssimo, que bom, muito grande. Quis rugir, do meio das pernas, quando deu o salto e saltando para muito acima fora do espaço no espaço do cheiro amarelo e borbulhante ou velho pensou no irmão mais velho junto com aquela subida vertiginosa que o rasgava e fazia gemer, pensou no irmão assim como quem vinha de lá do abismo para a revelação maior, o irmão espumando, estranho e desconhecido, muito familiar, branco, sem cueca, sem pelos. Ah sim, o cheiro espremido lhe encheu os olhos de desmaios caindo, caindo, resvalando, pousando e então lembrou que estava ali no banheiro do cinema.

Chorou. Elaboradamente. O homem o encontrou assim e ficou olhando. Ele, encostada a cabeça nos azulejos brancos de vazio. Elaboradamente desmanchando cada pequena dobra, tremendo, horas chorando se poderia dizer, pensando que não sabia por quê. Eu tinha dezenove anos então, faz tanto tempo, mas isso eu não vou dizer. Depois, com o tempo

João Silvério Trevisan

Do livro de contos: "Testamento de Jônatas deixado a David", Ed. Brasiliense, 1976, SP

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