BRILHO VERDE 

O trânsito flui devagar neste final de semana prolongado.

Palito nos dentes após o jantar, Sargento Nílson, toma o lugar do companheiro em frente à guarita. Observa atentamente os ocupantes dos veículos que passam, ainda mais vagarosos, diante dos guardas.

Distrai-se com um jogo que inventou para passar o tempo. O jogo consiste em adivinhar de onde vêm e para onde vão as pessoas. Encontra-se entretido em sua brincadeira, quando ouve a chamada no rádio.

— Atenção policiais, acidente no km, 46. Três mortos, um ferido grave. Caminhão chapa DJR 9687. Motorista provavelmente dormiu, bateu na ilha, subiu quase dois metros e caiu sobre o que parece ser um Renault, placa WLJ 3559, que vinha em direção oposta.

— Estamos indo.

Rapidamente o Sargento deixa um Soldado em seu posto, chama um Cabo para acompanhá-lo e dirigem-se ao local indicado. Lá, encontram o guarda que notificou o acidente. Os poucos curiosos são logo convidados, de maneira pouco gentil, a se retirarem. Sargento Nílson, dá uma volta em torno do carro, -- Coisa feia, pensa. Quando algo lhe chama a atenção. Um forte brilho no escuro da noite. Abaixa-se curioso, e vê uma mão decepada.

No dedo anelar, o luar cria reflexos no anel de esmeralda. Instintivamente, olha para os lados. Ninguém presta atenção em seus atos. O jovem guarda encontra-se entretido em relatar o acidente ao Cabo.

Nílson olha outra vez para a mão com o anel. Pensa em casa, nas contas, na mulher. A tentação cresce, vai superando o medo.

Coça a barriga. Pigarreia. Olha de novo.

Num impulso, chuta a mão em meio ao mato rasteiro que cresce no acostamento. Se arrepende. Subitamente lhe domina um pensamento aterrador, o guarda teria visto a mão antes dele chegar. Cauteloso, aproxima-se dos dois soldados e interroga o rapaz sobre os fatos, respira aliviado ao não ouvir nenhum comentário sobre a mão.

O lugar começa a ficar movimentado. O farol da ambulância, que veio buscar o motorista do caminhão, ilumina, exatamente onde está meio exposta ainda, a mão. Chegam também os bombeiros para o resgate dos corpos e os jornalista, estes bisbilhotando, assuntando.

É gente demais. Sargento Nílson sua frio.

O medo se apossa dele outra vez. Um outro medo agora, o de que alguém descubra e roube o que já considera seu.

Ziguezagueia por ali, gagueja ao responder perguntas. Tenta ascender um cigarro e a mão trêmula derruba o isqueiro. Alguém solícito, se abaixa para apanhá-lo e Nílson sente as pernas fracas e a visão nublada. Baqueia, e por instinto, aproveita e chuta, de modo simulado e bem mais forte que o pretendido, mato adentro a mão. Preocupa-se. O mato ali é cerrado, corre o risco de não mais encontrá-la.

Atento ao trabalho dos bombeiros, ouve que comentam sobre a mão, apura os ouvidos. Interessa-se fingindo desinteresse. É exatamente sobre ela que estão falando. Estão deduzindo que a mulher se encontrava com a mão para fora da janela do carro -- talvez batendo a cinza do cigarro -- quando houve a colisão. Uma voz, incita os outros a vasculharem o local. Outra voz, diz que é perda de tempo, e Nílson concorda com uma veemência nervosa.

O trabalho é lento. Muita gente. A noite se arrasta. Nílson sente-se mal. Espasmos no estômago. Não se contém, vomita o jantar. Um oficial que o observa, faz um comentário irônico. Nílson responde com um sorriso de terror. Ainda o observando, o oficial se mostra preocupado com sua aparência e lhe sugere voltar para o posto. O suor cristaliza em sua testa, e ele, rindo um riso besta de puro medo, diz que o jantar não caiu bem, comida de marmita, sabe como é. Tentando controlar o tremor facial, acrescenta que há muitos anos não se impressiona com acidentes corriqueiros. Foi só um mal estar, está tudo bem.

Vagueia nervoso entre as pessoas, puxa assunto com um e outro, faz comentários idiotas e ri das próprias piadas, até que, para seu alívio, oficiais, jornalistas e curiosos começam a se retirar.

O dia amanhece, indicando os minutos finais de seu turno. Apressa o Cabo para que retornem ao posto. Sente a urgência de se livrar do companheiro e poder voltar em busca do anel. Percebe, sem disfarçar a alegria, que começa a garoar. Com chuva, a probabilidade de haver bisbilhoteiros por lá é pouca. Intimamente torce para que a chuva aumente. Sem se conter desce quase que correndo da viatura e recusa até meio grosseiramente o café que o cabo lhe oferece.

Enfim. De volta ao local, procura com avidez. Vasculha o mato cerrado debaixo da chuva -- grossa agora -- e não a encontra. Desespero. Desce barrancos. Escorrega. Cai, levanta.

Sujo de barro e dolorido, pára tentando ordenar os pensamentos. Esquadrinha com cuidado todo o local, até que, inconfundível, embora em meio ao verde, brilha o verde da esmeralda. Trêmulo e feliz, aos tombos, chega até a mão, azulada agora, o que torna ainda mais vermelho o esmalte das unhas.

Tenta inutilmente tirar o anel do dedo. É impossível! Sente medo. Já está há muito por ali. Desesperado, arrisca uma tática infantil, cospe no dedo e puxa o anel. Não sai! Puxa com violência e sente estalar o dedo na mão morta. O anel dança teimoso na parte quebrada. Transtornado, enfia tudo no bolso da calça, a mão fria com um dedo quebrado e o dedo quebrado com um anel de esmeralda.

A mulher e os filhos dormem ainda quando volta para casa. Sem pressa agora, se dirige ao banheiro e tenta novamente arrancar o anel daquele dedo. Não há meios de tirá-lo. Está cansado demais. Desiste por hora. Apanha um saco plástico jogado ao caso no chão e coloca o pacote macabro dentro dele. Leva para o quarto e esconde no fundo de sua gaveta de meias e cuecas. Dorme, não um bom sono. Pesadelos. Sobressaltos.

Ouve ao longe a voz da mulher e acorda por completo. As lembranças da noite voltam imediatamente. Meio dia, ela foi levar os filhos para a escola. Aproveita a casa vazia e embora se encontre só, age furtivamente, apanha o facão e treme de excitação ao cortar da mão já putrefata, o dedo com o anel.

Enfim, com a jóia liberada, enterra num canto do jardim, a mão deficiente e o dedo. Desinfeta-se e à jóia. Veste-se apressado e sai.

Na joalheria, apresenta ansioso, o anel, que levara em uma caixinha encontrada entre os pertences da mulher. Estranhou que a pedra estivesse mais opaca que antes, mas ainda assim a achou linda.

— Realmente, uma bonita peça. Disse o joalheiro.

— E quanto vale?

—Praticamente nada.

—Nada? Como?

— Isto é bijuteria, disse mostrando o dourado. E isto é vidro, torturou, batendo na falsa esmeralda.

Roselene Navarro Oliveira

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