Mais ou Menos Um

Cinco dias deitada. Talvez nunca levantasse novamente. Seu corpo parecia uma bexiga cheia de água e se espatifava sobre o colchão meio confortável. Onde estariam todos? Tanto tempo sem sair do quarto, e ninguém se lembrava de que ela existia. Nos curtos momentos em que suas pálpebras descansavam, alguém deixava sua comida bem perto da cama, mas saía antes que ela enxergasse o vulto.

Alguém se aproximou, moveu a porta, sentou na cama e empurrou cautelosamente as carnes excessivas da mulher alojando-as em outros lugares com facilidade. Sua sobrinha sorriu e perguntou como ela estava. Viera lhe trazer o dinheiro de sua aposentadoria, visto que a doente não saía de casa havia muitos meses. A moça explicava as mudanças da economia, o imposto criado pelo governo, os juros, a inflação, mas era inútil. A velha sempre a maldizia mentalmente, porque achava que a menina a enganava com toda aquela conversa de governo.

Quando abriu os olhos, deparou-se com aquela boca estirada, larga, sorrindo-lhe. Alzira viera, para visitá-la. Trouxera-lhe um lindo buquê que, provavelmente, custara muito caro, apesar das dificuldades enfrentadas pela visitante, afinal, ela também era doméstica e arrecadava pouco com seu trabalho. Sem saber por quê, a enferma se lembrou das incontáveis vezes em que humilhara, xingara e distratara Alzira. A colega a beijou na testa e partiu.

O choque de panelas, na cozinha, desrespeitava o silêncio. Vigiava a porta esperando uma mão na maçaneta, a fim de dizer algo, mas ainda não sabia o quê. Às vezes tinha vontade de chorar, porque lampejos de arrependimento a assolavam, porém não queria que a surpreendessem com o rosto molhado, apesar de que já gostava do sabor das lágrimas.

Seu prato já estava lá. Virou o corpo devagar, empurrou suas pernas para fora da cama, apoiou-se no colchão e levantou o tronco. Mexeu os dedos do pé, e eles lhe pareceram cabeças de tartarugas enfadadas. Subitamente, ouviu um ruído próximo à porta. Atentou a entrada do quarto e esperou ansiosa. Sua ansiedade esvaiu-se, quando Josafar, o gato da casa, entrou soberbo no quarto, observou o local, esfregou-se nas pernas da velha e miou muito, como se quisesse convencê-la a lhe dar uma porção da comida. Josafar a persuadiu, porque ela se convenceu de que era melhor a companhia do gato que nenhuma. Ele comeu um bocado, mas partiu rápido, logo que lambeu o último filete de molho no chão.

Depois que o gato foi embora, sua ansiedade foi maior que a de antes da entrada, porque ela não sabia se o companheiro voltaria. De qualquer forma, cogitou, na cama, como se comportaria, caso Josafar viesse. Planejou como agiria, a quantidade de comida que daria, dependendo de sua amabilidade com ela, e tudo que lhe era possível fazer.

Ele demorou um pouco, mas chegou. Como já conhecera o ambiente, não demonstrou a mesma curiosidade nem fez graça como no dia anterior. Miou logo e esperou o maná. Ela estava preparada e liberou o alimento vagarosamente, a fim de que tivesse companhia por mais tempo. Jogava um pedaço de carne e, enquanto Josafar comia, ela lhe contava segredos, mandava recados, dava recomendações, aconselhava-o a comer devagar e fingia que ele dava atenção. Quando ele deixou o quarto, ela se sentia melhor, embora estivesse fraca, porque comera menos.

Alguns dias passaram, e a inválida, cada vez mais magra, só pensava em não morrer só, porém sua patroa notou a perda de massa, as covas no rosto e o punho que parecia um córrego sertanejo que se rarefaz, à medida que a estiagem se prolonga. Imaginou que a outra empregada estivesse transferindo comida do prato da doente para o próprio. Logo se repreendeu do que renderia muito assunto para sua confissão do próximo domingo, pois, momentaneamente, achou bom o suposto desvio de comida, por abreviar o peso de sustentar a velha. Para se redimir perante o olhar ininterrupto do Senhor, planejou como descobriria a causa do emagrecimento. Muito contrariada, visitou o quarto por tanto tempo evitado, depois que a suspeita posicionou o prato e sem que soubesse, para verificar se as medidas estabelecidas eram obedecidas. Primeiro se sentiu aliviada, porque a jacente não acordou e não a encheu com todas as bobagens que costumava dizer, mas logo sua consciência a repreendeu novamente aumentando a pauta para o domingo.

Quando a patroa descobriu que a comida ia para as entranhas do gato que tanto odiava, apesar de pertencer a sua filha, imaginou como seria malvista por suas amigas, se a senil morresse magra e esquelética em sua casa. Primeiro proibiu a velha de alimentar o gato, mas não teve atenção. Depois, tentou isolar Josafar, mas, além da oposição da filha, enfrentou os gemidos e gritos da enferma. Por último, aumentou a comida, porém a mulher parecia querer irritá-la, ou sujar sua imagem diante das amigas, pois, em vez de comer o acréscimo, ofereceu a exata quantidade ao amigo felino, para que conquistasse sua companhia por mais tempo.

Depois de mais uma cerimônia de troca, a mulher estava desesperada. Quando o gato saciava a fome, não perdia mais seu tempo no quarto. Ela oferecia mais arroz, feijão, carne, todo o prato, porém o animal tinha sua cota diária e não abria exceções. Com o tempo, o chão ficou repleto de comida seca, ratos, baratas e formigas, mas esses animais não desempenhavam tão bem o papel de companheiro. Mal o felino esboçava a intenção de partir, ela se desesperava, atirava toda a comida ao chão, dizia que ainda tinha muito o que dizer, muitos recados, para dar, porém não surtia efeito. Ela chorava só, arrependia-se dos males que cometera em vida, olhava para o teto, como se Deus só a escutasse naquela direção.

Encontraram-na morta em uma manhã ensolarada de quarta-feira, o que irritou muito a patroa, pois era um dia de muitos compromissos inadiáveis. O enterro foi breve, mas durou o suficiente, para a dona da casa mostrar a todos sua bondade e desprendimento, ao custear todo o enterro e chorar excessivamente.

Todos os dias, o gato ia ao quarto, mas, como não havia ninguém, ele miava um pouco, afiava as garras no lençol desbotado e saía tranqüilamente, sem reclamar. Fecharam o quarto, até a chegada de uma nova empregada, então, o animal esqueceu.


Ramon Arruda
 

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