Alianças

        O velho apaixonou-se pelo garoto e, desde então, como se o Maligno lhe tivesse soprado uma pestilência, seu coração começou a falhar. Uma febre silenciosa tomava conta de seu corpo, calafrios lhe percorriam a sensível planta dos pés e subiam, vertiginosos, pela coluna vertebral, até alcançarem a nuca e, nesse átimo de tempo, o coração sustava todo movimento.

        De natureza intempestiva e vivaz, o velho não se assustava com tais sintomas. Tudo que lhe importava no mundo, enquanto o coração cessava, era o garoto; nada mais, nem a vida, nem Maria.

        Punha-se à janela da palhoça, junto aos bichos que empalhara; acendia um charuto perfumado, presente do patrão, e ficava horas a mirar o peito definido, as pernas musculosas, a trilha de pelos escuros guiando para dentro das calças do rapaz. E que estupendo rapaz, que exibia um corpo perfeito! O melhor de tudo: ouvira falar que o volume generoso entre as coxas do garoto dizia respeito a uma bela vara, reta e grossa como poucas. Fremia de desejo, sonhando possuir o jovem como quem possui um deus.

        O velho era velho: a pele enrugada como papel amassado, a boca seca e amarga, no entanto, os olhos eram brilhantes e ainda tinha força naqueles braços para derrubar um novilho. Além disso, se unia a esposa com freqüência e disso Maria Moça não tinha o que reclamar, pois ele era fogoso, mesmo que arfasse muito e de quando em quando tomasse fôlego, exausto que ficava. Era velho, mas, como dizia, num misto de orgulho e dó de si, “ainda estava inteiro em tudo que um homem precisa estar inteiro”. E na sua sabedoria primitiva, era o que interessava.

        O rapaz levantava cedo, tomava um café reforçado, com ovos, leite e pão caseiro, e ia trabalhar nas lidas da terra. Não tardava e o velho deixava as cobertas aquecidas, deixava Maria, e vestia o casaco longo, proteção contra o sereno frio da manhã, e o seguia, imaginando toda sorte de luxúria. O rapaz se abaixava, derramando suor, em posição curva, nádegas em evidência, a arrancar ervas daninhas, e o velho começava a sentir o quente da febre, os calafrios a lhe varrerem a espinha e o coração surdo, subitamente a falhar no peito. Uma vertigem quase o tombava, porém, não antes de poder, em delírio, arremeter em supremo gozo às costas do rapaz. Enterrava o falo duro no rapaz e gozava como nunca. Depois tombava, perdia as forças, morria.

        Mas na realidade, não tombava, nem fincava coisa alguma, nem morria. Permanecia quieto, derretido de desejo, até que decidia voltar para casa.

        Encontrava Maria Moça na cozinha, rescindindo temperos gostosos, a cozer um feijão caprichado, a fritar bistecas de porco, a assar uma polenta de primeira. Encostada ao fogão, ela lhe sorria e ofertava um copo de vinho. O velho bem que gostava de Maria, de sua jovialidade de moça de trinta, bem cuidada. Maria não era do campo, era da cidade grande, mas se adaptara a vida simples da fazenda por amor a ele.
O velho tomou do vinho num trago, e serviu outro, que virou garganta abaixo ainda mais ligeiro. Depois, com dois passos largos foi até Maria, que remexia, distraída, as panelas no fogão, e sem lhe dar tempo de nada, alçou sua saia, baixou suas calcinhas rendadas e, num único gesto firme a fez ficar dobrada sobre o próprio ventre, então, fincou o falo duro com vontade. Maria bem dava seus gritos e gemidos, reclamando de sua grosseria, mas em verdade gostava dos ímpetos do velho e se comprazia em agradá-lo sempre. O que Maria Moça não imaginava era que o velho seu marido, com vigor redobrado naquele instante, arremetia em suas partes íntimas sonhando estar adentrando as carnes tenras do garoto.

        A vida naquela calmaria de interior seguiria insuspeita, caso não sucedesse uma ironia do destino.

        O velho repousava depois do almoço, como de costume, quando por necessidade imperiosa de ir ao banheiro, obrigou-se a levantar da cama mais cedo. Já estava a evacuar no vaso quando ouviu sussurros e falas abafadas que provinham dos fundos da casa. Mal aliviou-se e correu a ver o que acontecia, tomando o cuidado de não ranger as tábuas do assoalho. Por meio de uma fresta viu o garoto, inteiramente nu, acariciando Maria, que quase sem vestes, correspondia, cheia de paixão. O velho encantou-se. Pouco lhe importava Maria! O rapaz era ainda mais belo do que supunha e que talento natural detinha! Mais que depressa o velho viu-se estimulado e enquanto assistia a cena ardente, buscava a própria satisfação.

        A princípio, a satisfação em olhar o casal era mais que suficiente e todas as tardes o velho fingia ir repousar e depois corria a espreitar o garoto e Maria Moça em seus encontros inflamados de paixão, mas, pouco a pouco o ciúme começou a lhe remoer o íntimo. Começou a ter febres e calafrios mais freqüentes, o coração falhava mais vezes e a agonia de não poder ter o rapaz em seus braços, enquanto Maria o desfrutava livremente, foi dominando seu ser.
 
        Quando Maria chegava, depois da hora de amor com o jovem rapaz, o velho logo a procurava e vinha lhe cheirar o pescoço, alisar sua pele e também penetrá-la, no afã de sentir o cheiro e o gosto do garoto. Maria Moça bem estranhou a mudança no comportamento de seu marido, porém, ria-se, pois concluiu que sem-saber-sabendo, o velho percebia o cheiro do amante. Mas isso foi no princípio, porque uma raiva crescente foi dominando o velho. Frustrado e isolado de sua paixão, competindo com sua esposa pelo amor do jovem, ciente de seu sonho quase impossível de se realizar, foi tramando uma vingança libertadora.

        Maria precisava morrer, já que lhe roubara a maior alegria da vida, e não sentia dó nem piedade dela, pois ela também não se condoía de seu coração fraco e angustiado.

        Foi fácil para o velho. Deixou moranguinhos de molho em veneno discreto e letal, e depois de bem encharcadas as frutinhas, serviu-as à mesa da casa em suculenta salada de frutas. Maria logo a provou e caiu doente. Pediu para ser levada ao médico, mas o velho não a levou e ainda cuidou de que não melhorasse, servindo suco de morangos ainda mais envenenados. O enterro foi terrível, pois o velho teve de fazer-se de inconsolável e isso muito lhe custou.

       Viúvo. Agora era viúvo de novo e o garoto estava só. Tinha tudo articulado. Iria se aproximar do jovem, lhe oferecer um ombro amigo, lamentar-se um pouco também e lhe tocar a pele sedosa. Fez isso, entretanto, o rapaz não lhe deu a menor chance de contato, fugindo de sua companhia, desprezando qualquer conversa íntima, baixando os olhos, desviando o olhar, acossado pelo luto brutal e pela dor da culpa de não ter podido auxiliar a mulher amada. Via o velho como uma alma penada a lhe perseguir, ameaçadora. Então, mais uma vez, o velho foi se amargurando de sua sorte e a dor da rejeição foi superando o ardor da paixão. Foi nutrindo um ódio pelo rapaz, mas não bastante para deixar de desejá-lo. Ainda o queria, mais que tudo o queria, mas parou de procurá-lo e nunca mais se viu os dois juntos.
 
        Como se encontrasse o caminho da sublimação de seus libidinosos impulsos, o velho voltou a dedicar-se com renovado interesse à arte do empalhamento. Pouco a pouco voltou a sorrir e era com entusiasmo pueril que exibia a qualquer visitante seus espécimes empalhados com verdadeira e progressiva maestria. Alinhava sobre um caixote liso toda sorte de instrumentos, organizava com esmero cada detalhe. As luvas, o avental, o bisturi, a seringa, os arames, o serrote e alicates, a tesoura, o paquímetro, nada faltava. Noutro madeiro punha uma diversidade de materiais, do prego à estopa. E num terceiro móvel rústico, abrigava produtos químicos, dentre os quais o formol nunca faltava. Não havia bicho que não pudesse empalhar com perfeição.

        Nesse ínterim, o garoto seguia seu trabalho na fazenda, sem jamais olhar nos olhos do velho, mas passados poucos meses, ouviu-se um diz-que-me-diz que bandeara para os lados do Paraná e que se fora sem dizer adeus a ninguém.

        O velho prosseguia sua vida renovada, feliz, ganhando fama de grande artista, o coração voltando a bater como um relógio suíço.

        Mas isso foi até o dia da sua morte, quando o coração parou de vez e como ninguém tivesse avistado o velho já por longas horas, um grupo se reuniu e tratou de ver o que se passava. O capataz esticou o pescoço pela janela da casa, avistou os bichos empalhados que pareciam dotados de alma, e uma caixa de finos charutos aberta sobre a mesa. Gritou pelo velho, mas a casa estava um silêncio só. Tiveram que arrombar a porta e foram dar com o velho estendido sobre a cama, morto, abraçado a um rapaz nu, de belas formas. O mais estranho é que o corpo do rapaz estava perfeitamente empalhado, exibia um olhar fixo de apaixonado, e na sua mão havia uma aliança com os dizeres: para sempre teu, velho.

Marta Rolim
 

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