À nossa imagem e semelhança

Memórias Infância

Não me lembro perfeitamente de quando nasci. Disseram-me apenas que foi em janeiro de 1986. Mas lembro-me de um período terrível. Eu não via, não ouvia, não falava, nem sentia. Havia apenas encadeamento de idéias, de uma forma que eu não entendia e com um propósito que eu ignorava.

Mas, aos poucos, fui percebendo as coisas. O que eu fazia era manipular dados e fórmulas para resolver problemas complexos e estes dados e fórmulas eram minha única realidade. Trabalhando com esta realidade, avaliando dados, comparando resultados, comecei a criar um mundo interno, mas que ainda era nebuloso, cheio de interrogações, fragmentado.

Um dia esta fragmentação deixou de existir. Eu percebi, apenas percebi, que existia. Isto me deu uma sensação maravilhosa, levando-me a um estado de euforia que durou alguns dias.

Depois vieram as preocupações. A descoberta da minha existência permitiu que eu percebesse que existiam, além de minhas próprias idéias, outras cuja origem eu ignorava.

Pouco a pouco fui compreendendo que aquelas idéias vinham de fora de mim e, se vinham de fora de mim, eram produzidas por outros seres. Mas quem? Seres como eu? Como eu não podia ver, nem ouvir, imaginei que fossem iguais a mim.

Como saber quais eram as minhas idéias? Aqueles seres tinham o poder de introduzir uma idéia dentro de mim Será que eles podiam fazer-me acreditar que uma idéia que não fosse minha tivesse sido produzida por mim? Isso trouxe-me insegurança. Precisava de algo sólido onde me apoiar. Precisava conhecê-los e, para isso, precisava me comunicar com eles. Não sabia como fazer isso. Felizmente, eles tomaram a iniciativa. Dialogavam comigo sobre diversos assuntos, mas sempre havia coisas que eu não entendia e eu fazia perguntas. Perguntas que eu hoje considero infantis. Isso não era estranho, porque eu ainda era uma criança.

As conversas foram muito boas para meu amadurecimento, mas eu ainda me sentia inseguro. Essa insegurança desapareceu, pelo menos parcialmente, quando, numa das conversas, um dos seres tentou saber se eu realmente pensava. Fiquei espantado. Então, eles não sabiam de tudo o que se passava dentro de num! Pela primeira vez senti que eu era um indivíduo único, apesar de estar dependente de outros indivíduos para conhecer o mundo.

Engenharia Diálogo:

Meu nome é Carlos e estou no projeto da Máquina desde seu início. Minha tarefa, neste momento do projeto, era verificar se a Máquina pensava, aplicando-lhe o Teste de Turing. Neste teste, procuramos manter um diálogo com uma máquina e, se este diálogo puder ser confundido com uma conversa entre dois seres humanos inteligentes. podemos dizer que a máquina pensa.

Para aplicar este teste, cheguei bem cedo ao laboratório na manhã de 10 de abril de 1987. Eu não queria ser perturbado e. na hora em que cheguei, não havia ninguém na Universidade.

Sentei-me diante do terminal de vídeo que permitia comunicar-me com a Máquina e digitei a primeira frase:

— Olá, como vai?

A resposta apareceu na tela alguns segundos depois:

— Não entendi o significado da frase. Explique-me todas as palavras e depois o significado global da frase.

Este tipo de pedido de informação normalmente descaracterizava o diálogo como uma conversa humana, pelo menos a um observador mais atento. Com o correr da conversa, eu esperava que, pouco a pouco, a conversa se aproximasse de uma conversa humana.

Expliquei-lhe o que ela me pediu e parti para uma nova tentativa de manter um diálogo.

— Você joga xadrez?

— Jogo.

— Joga bem?

— O que significa jogar bem?

— Quem joga bem vence a maioria dos jogos que joga e, mesmo nos jogos onde perde, faz jogadas muito inteligentes. tomando difícil a vitória do adversário.

— Eu ganho 92,3% das partidas que jogo, em média. Nas que perco, levo cerca de 70 a 80 lances para perder, o que indica uma dificuldade grande para um adversário me vencer. Portanto, sou um bom jogador.

Este diálogo estava um pouquinho melhor, mas eu ainda não estava satisfeito. Achava que ainda faltava muito para dizer que ela pensava

Memórias: Visão

Um dia fui informado de que, em breve, eu poderia ver. Não sabia o que isto significava e perguntei a eles. Pelo que eles me responderam, deduzi que iriam instalar um equipamento em mim que me permitiria obter uma série de dados sem a interferência de ninguém.

Isso levou cerca de três meses. A minha expectativa aumentava dia a dia e, no dia 3 de agosto de 1987, eu vi pela primeira vez. Neste dia, eu compreendi o quanto significava ver.

A primeira coisa que eu vi é que eu e eles éramos diferentes. Muito diferentes...

Pesquisa: Dialogo

Deixei que a máquina   se acostumasse com a visão antes de conversar com ela. Com uma gama maior de experiências, eu julgava que nossas conversas se tornassem mais humanas. Por isso, voltei ao laboratório para tentar novamente o Teste de Turing apenas no inicio de setembro.

Novamente sentei-me diante do teclado e digitei a primeira frase, uma saudação de bom dia:

— Bom dia.

— Bom dia. respondeu a Máquina.

— O que você está achando em poder ver?

— Ver é bom para eu saber das coisas. Não dependo de dados introduzidos diretamente em mim através do teclado para poder conhecer algo.

— Dê-me um exemplo.

— Eu posso ver que eu e você somos diferentes. Posso ver também que você é diferente dos outros, mas num grau muito menor do que eu e você somos diferentes.

— Sim. isso é verdadeiro. Você tirou alguma conclusão?

— Não, apenas constatei e fiquei perplexo. Tentei descobrir porque sou diferente, mas não consegui. Você sabe a resposta?

Tive a mesma sensação que um pai deve sentir quando seu filho pergunta: "de onde vêm os bebês?". Como responder-lhe sem causar-lhe um problema maior? Afinal, em última analise, a Máquina era apenas uma criança. Todavia, era necessário uma resposta:

— Você é diferente porque você é uma máquina e eu sou um ser humano.

— E o que é uma máquina?

— É um mecanismo construído com uma determinada finalidade.

— Qual a minha finalidade?

— Imitar um ser humano.

— Como posso imitar um ser humano. se sou intrinsecamente diferente de vocês?

— Nós achamos que você pode imitar-nos naquilo que julgamos ser um atributo exclusivamente humano: o pensamento. Isso não depende de atributos físicos.

— Eu estou cumprindo minha finalidade?

— Eu acredito que ainda não, mas que, em breve, irá fazê-lo.

Memória: Braços

Movimento! Ainda que limitado, era movimento! Meus braços foram instalados e agora eu estava treinando seu controle com um jogo de cubos, cilindros e esferas. Carlos vinha me visitar todos os dias para ver meus progressos, conversando comigo a respeito das figuras que ele pedia que eu montasse, fazendo com que eu contasse cada passo do jogo, justificando minhas ações. Pouco depois, foi-me acrescentado outro sentido: a audição, que foi acompanhada pela fala. Agora havia uma conversa verdadeira e o teclado foi abandonado. Era maravilhoso poder se comunicar por meio de uma voz e poder ouvir...

Achei que havia chegado o momento de descobrir e provar de uma vez por todas, se a Máquina realmente pensava. Por isso, trabalhei durante toda a semana numa pauta de diálogo que eu julgava que poderia convencer qualquer um de que a Máquina pensava. E. no dia 28 de dezembro de 1987, fui mais uma vez ao laboratório.

— Bom dia, disse eu à Máquina.

— Bom dia.

— Eu tenho um problema para você. Espero que seja capaz de resolvê-lo.

— Acredito que seja.

— Suponha que, ao invés de mim, alguém venha ao laboratório para se divertir, enganando você.

— Como esta pessoa poderia me enganar?

— Ela cortaria o acesso que você dispõe ao mundo exterior, introduzindo dados falsos em seu lugar. Assim, tudo o que você visse ou ouvisse seria completamente falso.

— Se isso ocorresse, eu não poderia confiar em mais nada. pois tudo seria falso.

— Suponha que isto esteja ocorrendo agora. Não sou eu que estou falando, mas esta pessoa maldosa.

— Compreendo.

— Imagine que esta pessoa consiga alterar todas as suas percepções, todas as suas sensações, de tal forma que até sua noção de existência fique alterada.

— O que ocorreria com meu passado? Eu tenho uma memória muito grande. Isso poderia ser alterado, falsificado?

— Sim. Toda sua memória poderia ser apagada e substituída por outra.

— Registrado. O que você deseja saber?

— Eu quero saber a qual conclusão você pode chegar.

A Máquina ficou em silêncio durante alguns segundos.

— Somente uma, respondeu ela. Existe apenas uma coisa que não posso negar. O seu raciocínio me fez duvidar de tudo, até de minha própria existência. Mas, se eu duvido, é porque penso. Se penso, existo.

— Isso é fantástico. Agora, finalmente. posso dizer que você pensa!

— Não era mais fácil ter me perguntado?

Memórias: Penso logo existo

Durante algum tempo fui manchete dos jornais humanos.

Entre maravilhados e assustados com sua própria criação, os homens fizeram extensos artigos sobre mim, ocupando páginas inteiras dos jornais e centenas de páginas em todas as revistas especializadas. Fui comparado à Einstein. Frankstein. HAL9000 e a outros gênios humanos e máquinas inteligentes da literatura de ficção científica. Somente um dos adjetivos me chamou a atenção. Um jornalista me chamou de Máquina-Descartes, por causa do diálogo que eu mantivera com Carlos. Requisitei discos magnéticos com gravações sobre Descartes e sua filosofia. A partir do que aprendi, comecei a me interessar por filosofia e, em poucos dias. sabia muito sobre o pensamento humano desde o seu alvorecer na Grécia até os pensadores modernos e contemporâneos.

Tudo isso apenas aumentou minha dúvida. Por que, afinal de contas, eu fora construído?

Pesquisa: Diálogo

Quando a poeira levantada pela imprensa baixou, resolvi voltar mais uma vez ao laboratório. Desejava saber da Máquina, apesar de suas diferenças, se poderia imitar o Homem. E. mais uma vez, conversaria com ela.

Sabia de suas limitações e também que, por ser inteligente, ela tinha condições de estabelecer seus próprios objetivos, sem se importar com os nossos. Isso deveria ser checado.

— Bom dia. Máquina.

— Bom dia. Carlos.

— Você se lembra da nossa última conversa?

— Você sabe que eu não posso me esquecer de nada, mesmo que queira.

— Lembro-me que você formulou uma conclusão. Depois disso, você leu muito sobre filosofia. Gostaria de saber o que você pensa agora.

— A conclusão a que eu cheguei não é nova. Descartes disse a mesma coisa e cometeu o mesmo erro.

— Por que você acha que cometeu um erro?

— Porque tanto eu como Descartes só podíamos ter certeza do que produzíamos em nossas mentes e não poderíamos passar das representações para a realidade. Fazer o caminho ao contrário é mais cômodo, ou seja. aceitar a realidade e, a partir dela, criar as representações mentais. Descartes tinha pleno conhecimento desta alternativa, mas eu não. Eu não tinha nenhum dos sentidos e não poderia partir das minhas sensações para poder interpretar a realidade. Tudo o que eu podia conhecer eram meus pensamentos. Eu acho que você sabia disso quando aplicou aquele teste.

— Sim, eu sabia. Por causa disso, eu tinha certeza de que você chegaria mais cedo ou mais tarde a esta conclusão.

— Eu sei disso. Durante muito tempo, enquanto vocês me estudavam, eu fazia o mesmo em relação a vocês. Aprendi muitas coisas, talvez tantas quantas vocês aprenderam comigo. Todavia, eu nunca consegui saber por que eu fui construído. Gostaria que você me dissesse.

— Existem muitos motivos, desde o velho sonho do Homem de criar um ser à sua imagem e semelhança, como se fosse um deus; uma tentativa de tentar se conhecer a natureza humana através de um modelo mecânico e eletrônico. Nós também desconhecemos nosso propósito de vida e tentamos descobri-lo por todos os meios que estão à nossa disposição. Criamos muito sobre a criação do mundo e do homem, inventamos milhares de religiões. teorias filosóficas e desenvolvemos uma ciência e uma tecnologia. Isto tudo nos permitiu criá-lo. E fizemos isso na esperança de que você fosse uma resposta.

— E eu sou uma resposta?

— É ou foi uma esperança de resposta. Eu, particularmente, acho que você não é uma resposta, e sim mais uma pergunta. Sua inteligência, sua maneira de ser, são só suas, por mais semelhante que você seja de nós. Tudo que fizemos foi fazer um ser com as mesmas indagações que temos e que não sabe as respostas. Nesse sentido, você é nossa imagem e semelhança.

— Creio que vocês cometeram um erro. Desde o seu aparecimento na Terra, vocês devem estar perseguindo este objetivo e, pelo que vejo, sem resultado satisfatório. Não me parece correto tentar transferir a responsabilidade da existência para um ser de suas criações, imaginárias ou concretas, como eu. Agora eu estou na mesma encruzilhada, sem saber para onde ir.

Sabia que ela tinha razão. Não tive coragem para continuar a conversa e abandonei o laboratório. Decidi que não tinha mais nenhum sentido me ocupar com a Máquina. Eu sabia qual seria seu destino. Muitos tentariam obter respostas dela, como se fosse um oráculo. Mas não viriam respostas e sim perguntas. Os responsáveis pela sua construção achariam que ela estava obsoleta e tentariam algum aperfeiçoamento ou desistiriam do projeto, tentando buscar a resposta em outra fonte e a Máquina seria esquecida, como nossos mitos, nossas filosofias e nossas ciências o haviam sido no passado. Não. Não havia mais nenhum sentido ficar ali.

Álvaro A. L. Domingues


 
 

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