Conteúdos dos meus alforjes no Dia de Reis do ano 2001

        À espera da minha vez para consultar a doutora Gleusa, folheava o que sobrou de uma das edições da revista Prodoctor, do grupo farmacológico Aché de São Paulo, (exemplar desfolhado ou surrupiado até o ponto de não conseguir saber mais a data da sua publicação) e, assim, me deparei com mais alguns descalabros ou disparates jornalísticos. Numa reportagem sobre o setecentista Colégio Caraça de Minas Gerais, o seu autor (ou autora?) escreve, contraditoriamente, o seguinte parágrafo:

        (...) “Em 1834, a perseguição imperial às práticas religiosas atingia o seu auge, culminando com o fechamento do Seminário do Caraça. Insaciável, a coroa portuguesa voltou-se, então, para o Colégio. Que apesar de resistir bravamente, foi obrigado a fechar suas portas em 1842.”

        Ora, se a autora (ou o autor?) reconhece que em 1834 o Brasil já fosse um Império independente (pelo menos independente em relação a Coroa portuguesa), como poderia este mesmo Império, já em 1842, no início do governo imperial de D. Pedro II, sofrer a pressão da administração Real lusitana a ponto de se fechar (não definitivamente) o insigne Colégio Caraça?

        Ao me referir a esta incorreção, devo mencionar outras corriqueiras incorreções cometidas e difundidas por repórteres de todas as nossas redes de televisão (inclusive das públicas). Incorreções como confundir século XVII com século XVIII, situar personagens históricos em épocas nas quais não viveram ou atribuir-lhes feitos e frases de outros. Isto me preocupa tanto quanto a acelerada deterioração lingüística dos nossos códigos léxico-gramaticais.

        Chamou-me a atenção uma entrevista do cineasta Sylvio Back concedida ao escritor e editor Anelito de Oliveira (do Suplemento Literário de Minas Gerais) – edição de Novembro de 2000 – na qual o entrevistado disse, entre outras coisas muito interessantes, o seguinte:

        “Desde quando, em 1976, pela primeira e última vez, a convite de Paulo Emílio Salles Gomes, discuti com alunos e professores “Aleluia Gretchen”, no curso de cinema da Universidade de São Paulo, tanto lá como nos seus similares nas Universidades de Brasília e Federal Fluminense, a partir de então meu cinema foi sendo patrulhado e ostensivamente expelido do universo acadêmico. Depois dessa, nunca mais fui chamado para conversar sobre nenhum dos meus 35 filmes (hoje com 61 láureas nacionais e internacionais). (...) O  corpo docente das citadas academias (com as exceções que confirmam a regra), movido por um crônico corporativismo de gosto stalinista (qual seja, o de” apagar da foto “quem não comunga com seu ideário político-ideológico e estético), acrescido de uma incontornável inveja dos dublês de cineastas ungidos à condição de professores (e vice-versa), sempre soube omitir, censurar,” esquecer “e proscrever o cinema de Sylvio Back (na sala-de-aula, nos textos e  livros, e nas exibições). (...) Não preside meu cinema nenhum espírito de horda, nem reverência a instituições e a poderosos. (...) Isso tem a ver, em parte, com a minha formação liberal e não-religiosa, de leituras e filmes “proibidos”, uma vocação instintiva de recusa ao que é sacramentado, sancionado e a tudo que deve ser obedecido sem discussão, acrescido da própria marginalidade autoral em que me vi atirado.”

        Caso congênere ao do cinema de Sylvio Back no Brasil ocorreu na URSS e na Rússia pós-soviética com o cinema “maldito” de Sergei Paradjanov. Citando estas denúncias do cineasta Sylvio Back me intriga um lance pouco discutido entre nossos formadores de opinião e entre nossos limitantes horizontes culturais pseudocríticos: porque nos restringimos a apontar apenas as formas sociais, econômicas e políticas de opressão, proscrição, exílio, dominação e “esquecimentos” (ou “exclusões”) quando nos omitimos e deixamos passar batido os sistemas de controle, legitimação e cerceamento dos nossos processos e agentes da produção e criação intelectual, artística e literária? Porque continua protegida na penumbra acrítica ou nas trevas do obscurantismo “democrático” a nossa pobreza ou mediocridade cultural e os que dela se beneficiam?

        Anotações marginais sobre mitologias greco-romanas:

        Primeira: Desde as romanas Saturnais o espírito carnavalesco e dionisíaco é movido pelo impulso de inversão da realidade?

        Segunda: Se Júpiter amou uma novilha, podemos ver aí um antigo caso de zoofilia?

        Terceira: Na história mítica de Actéon poderíamos ver alguma antecipação metafórica ilustrativa da contemporânea tragédia de um doente de AIDS?

        Quarta: Faetonte seria equivalente ou similar, em seu destino, à mítica tragédia de Prometeu?

        Quinta:Também podemos incluir conteúdos de ressentimento e vingança ao perfil do espírito apolíneo?

        Sexta: Na mitológica trajetória de Baucis e Filêmon não teríamos uma versão semelhante à história bíblica de Sodoma e Gomorra?

        Sétima: A romã que Plutão ofereceu a Prosérpina, limitando sua liberdade, não seria equivalente à mítica maçã apreciada por Eva?

        Oitava: Ceres levou o menino Triptólemo em seu carro, puxado por dragões alados, a todos os países da Terra, aquinhoando a humanidade com cereais valiosos e com o conhecimento da agricultura. Esta passagem da mitologia grega poderia ser lida como uma antecipatória e mítica defesa da presente globalização dos alimentos transgênicos?

        Nona: A vingativa Vênus era a rainha dos militaristas assírios?  Indagação que suscito ao ler fragmento do poema “Comus” de John Milton, no qual alude à história de Vênus e Adônis da seguinte maneira: “Amortecida a dor, e a seu lado/ Jaz a triste rainha dos assírios.”

        Décima: Jacinto fora, já na Antiguidade, o que hoje alguns chamam de promíscuo?

        Décima- primeira: Será que William Shakespeare se inspirou na lenda do rei Ceix e da sua rainha Alcione (protótipos do mítico casal Tristão e Isolda) para talhar a tragédia moderna de Romeu e Julieta?

        Décima - segunda: Alcione, ao advertir Ceix, sobre os riscos que correria numa viagem marítima até a cidade de Carlos, na Jônia, onde consultaria um oráculo; entre outras coisas, lhe disse: “Sofrerei não apenas os males verdadeiros que encontrares como também aqueles que meu temor sugerir.” Assim, desde a Antiguidade grega, era humana a nossa atual propensão a sofrer duas vezes mais uma situação propiciadora de angústias?

        Décima - terceira: descrição fragmentária dos aposentos palacianos do deus Sono: “Não há na mansão porta que gema nos gonzos, nem qualquer vigia; mas, no centro, um leito de negro ébano, adornado com plumas e cortinas negras.” (Thomas Bulfinch).

        Décima – quarta: “Juno ordena-te que envies um sonho a Alcione, na cidade de Traquine, revelando seu finado marido e todos os acontecimentos do naufrágio.” — T. Bulfinch. Neste episódio mítico dos antigos gregos Bill Gattes e outros criadores da Informática colheram a sugestão para a contemporânea tecnologia dos “e-mails”?

        Décima – quinta:  Temos na mitológica figura da orgulhosa Anaxárete a origem  da expressão popular “coração de pedra”?

        Décima – sexta: O mito da mortal e belíssima Psique (que rivalizou em beleza com a deusa Vênus) teria sugerido ao cineasta Jean Cocteau alguma cena para o seu inesquecível filme A Bela e a Fera?

Décima – sétima: Vênus foi um protótipo de Jocasta ao tentar afastar seu edipiano filho Cupido da belíssima e desafiadora donzela Psique?

        Depois do dia de Reis, passaremos a aguardar a entediante e exótica (ou repetitiva) semana do Carnaval. Depois, ainda teremos a tragédia cristã (Semana Santa), o dia das Mães, o dia dos Namorados,o dia do Orgulho Gay, o dia dos Pais, o dia das Crianças, o dia dos Mortos e, finalmente, um novo Natal. É o eterno retorno de Nietzche?

                 José Luiz Dutra de Toledo