A Alma de um Homem (*)

Não tenho a virtude pequeno-burguesa de ser sempre o mesmo. Não almejo uma imagem estabelecida. Procuro diariamente novas experiências, conhecimentos, paixões. Em cada partícula de Antonio há uma infinidade de outros Antonios, resultando numa incógnita absurda. Contraditório, não me conheço profundamente e qualquer tentativa nesse sentido seria inútil, mesmo assim reflito constantemente sobre ações e sensações corroendo o espírito feito cupins persistentes. Abençoado pelos deuses, faço de meus atos uma sucessão de deleites. Jamais seria rigoroso, metódico ou esnobe, para isso me faltam método e paciência. Muitas vezes beiro a irresponsabilidade e só tenho compromisso com a alma. Acostumado a descidas profundas como a de Orfeu ao Hades, sou um geminiano típico, perfumado de superficialidade, inquietação e imaginação. Posso também não ser transparente, beirando o mistério, é que a clareza me angustia da mesma forma que a filosofia oriental inibe os norte-americanos. Menino cheio de vontades temo a maturidade, prato cheio para uma boa experiência analítica. Revelo-me por inteiro na literatura, desvendando ou aperfeiçoando significâncias. Procuro uma intimidade cada vez maior com a gramática portuguesa. Um escritor deve conhecer apaixonadamente seu idioma para desrespeitá-lo. Talvez muitas vezes use frases inventadas por outros, fisgadas em centenas de livros de todos os gêneros. Mas pergunto: existe originalidade na literatura contemporânea? Procuro a cada minuto a serenidade e o silêncio interior. Não tenho uma boa relação com conflitos, desprezo o lado escuro dos sentimentos. A minha hora do lobo é terrível, desesperada. Cravo os dentes de animal solitário na própria goela. Nestas horas de morte e agonia, me apego ao invisível, ao luminoso intocável. Há poucas semanas, dentro de um círculo de fogo numa fábrica abandonada, a Scorpio Press, escrevi com gilette o nome amado nas coxas e braços, banhando-me em sangue. Meses antes, forrei de cravos vermelhos o passeio público da residência de um amante maltratado. Fui capaz de enviar durante um mês mais de cem cartas apaixonadas para um amor traído. Sou um romântico explosivo! Não sou moralista, embora não suporte a vulgaridade pseudo-erótica da juventude tupiniquim. Acredito em Anjos e suspiro aliviado ao sentir que voam perto de mim. Vejo vultos, ouço vozes e já sonhei com outras vidas, desde o conhecimento de ervas na idade média germânica à pobreza absoluta no deserto dourado. Sei que aproximo-me diariamente do "inexistente" e chegará o momento em que serei levado pelo Nada. As miragens não-miragens devoram-me. Sou esfinge e labirinto. Estive numa comunidade italiana mitológica, com um surpreendente templo de cinco andares embaixo da terra, onde todos renunciaram aos seus nomes pomposos e passaram a chamar como alguns bichos. Durante os dias que lá fiquei, batizei-me do mitológico Minotauro. Pensei primeiro em ser o Aranha, já que costumo tecer teias quase invisíveis, aprisionando insetos. Fascistóide, fascina-me vê-los debater em sua insignificância. Permito que o meu monstro algumas vezes saia da jaula, pois um monstro encarcerado é como Deus, presente mais incapaz de resolver os nossos problemas imediatos. Nessa comunidade mágica, Durahan, fui abençoado por Falco, o sábio mestre espiritual, que esteve na Atlântida e fala o seu idioma. Sou barroco. Procuro saídas, mesmo sabendo que quem ajudou o homem a sair do labirinto, foi punido: Ariadne pelo abandono do amante e Prometeu pelo castigo eterno. A literatura, o teatro, a música, o cinema e as artes plásticas são sopros para o coração, compensando a insatisfação de um eterno caçador de mitos e símbolos. Viajo para saciar a sede d´alma. Paralelo ao Antonio angustiado existe o Antonio apaixonado, amigo e feliz, feito de sangue e suor. O meu ardor vadio aprecia diários, anotações, álbuns de fotografias, colagens, poesias. Entrego-me também à fantasia e muitas vezes não passo de um maluco. Até inventei, encarnando-o, um personagem ideal: o eu aventureiro, maldito, solitário, irreverente. Vejo-me assim no espelho, mas não sei se é o meu eu verdadeiro. O que seria o eu verdadeiro? Não sei, não consigo chegar lá. Admiro a sensação de liberdade, a reflexão intelectual, a natureza espiritualizada, a sensualidade em todos os seres. Não me preocupo com os bens terrenos, jamais me animaria em ter um carro último tipo, por exemplo. Troco todo o consumismo por um relacionamento de beleza, companheirismo e masculinidade como o de Aquiles por seu companheiro de armas. Sou assim, estúpido como qualquer outro da raça humana.

Antonio Júnior

(*) Publicado no Brasil / Euro-Press (Londres, Inglaterra, 1998)
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