UM VELÓRIO ANUNCIADO

Em 1630, os holandeses invadiram Pernambuco sem resistência. Quando caiu o arraial de BonJesus, em 8 de junho de 1635, os holandeses, - cinco anos após terem desembarcado em Pernambuco –, exterminaram a resistência dos luso-brasileiros. O domínio dos invasores ocupava a abrangência de uma área desde as capitanias do Maranhão, do Ceará, do Rio Grande do Norte, da Parayba, de Pernambuco, de Itamaracá, de Alagoas e de Sergipe para se ter uma idéia da extensão ocupada.
Os portugueses refugiaram-se no interior. Partiram para as guerrilhas. Após uma luta insana, da qual alguns comandantes holandeses se mantiveram afastados, os holandeses abandonam Olinda; alguns galegos, porém, permaneceram no Nordeste. Fundaram vilas que se transformaram em cidades.
Após alguns séculos, as cidades habitadas por pessoas de diversas partes da Europa, passaram a viver como gente de uma grande e mesma família. União e solidariedade. Até esqueceram as suas origens belicosas, fruto do expansionismo europeu. Ninguém mais levava ao prato da balança do xenofobismo de onde tinham vindo os seus antepassados, embora estivesse na cara de cada um as características de povos de várias partes do mundo. Todos viviam em bons lençóis. 
Com o desenvolvimento daquelas cidades centenárias, outras, no interior, no Sertão, distante do litoral, foram surgindo. O povo, a igreja, a delegacia, a Prefeitura, a Câmara de Vereadores, o mercado, o comércio, a escola, as ruas pavimentadas, o rio periódico, as festas, os crimes, a agropecuária, a cultura, o folclore.
Houve uma época de prosperidade no início do século passado. O governador, na Terra dos Marechais, foi orientado que mandassem professoras às escolas das cidadezinhas do interior. As professoras saíram da capital em direção aos grupos escolares recém-inaugurados em vários municípios. Moças de muitos refinos. Eram intelectuais preparadas nos melhores colégios da capital. Essas professoras, no interior, ficavam hospedadas à residência das autoridades municipais.
Uma delas, a morena Leocádia, filha única do galego Eurípedes e da índia Desdêmona, recebeu convite do Palácio do Governo e foi nomeada professora. Desdêmona, mãe de Leocádia, acompanhou a filha com medo de perdê-la. O pai, Eurípedes, ficou sozinho na capital do Estado. A mãe da professora Leocádia não suportava a distância da filha; Eurípedes, ressentido, aceitou o capricho da mulher e fez os gostos da filha, consentindo a distância mesmo sendo tão apegado a Leocádia. O coração de Eurípedes talvez não resistisse; e ele ocultou isto da esposa e da filha. Agüentou calado. Despediu-se. Viu o trem levá-las embora. Segurou-se. Estava sozinho. Tapou-se o mundo. Era o fim também para as duas mulheres que se aventuraram na viagem ao Sertão. O sonho de Leocádia em ser professora valia qualquer sacrifício.
Um dia, aconteceu o inesperado. A mãe da professora recebeu um telegrama que informava o falecimento de Eurípedes. O choque fez com que ela gritasse pelas ruas da cidade até o grupo escolar e, dele, arrancasse a filha para, imediatamente, voltar à capital; senão não daria tempo de irem ao enterro do pai.
Leocádia não se perdoava. A mãe agredia as estradas em péssimo estado de conservação e a demora na viagem até a próxima cidadezinha onde ambas embarcariam no trem que as levou de volta à Capital dos Marechais.
Durante a viagem aconteceram repetidos desmaios, choros e lamentos. Deixaram elas as ruas da cidade onde moravam cheias de pessoas aflitas com a notícia da morte repentina de Eurípedes na capital. O prefeito, solidário, providenciou um transporte para que, o mais rápido possível, levassem mãe e filha à cidade onde embarcariam no trem até a capital. Quando ambas chegaram, nem conseguiam acreditar no milagre. Correram. Aproximavam-se da residência do morto. Elas sem fôlego.
A professora Leocádia e sua mãe Desdêmona, às pressas, sem perceberem o anormal. De longe, avistaram Eurípedes na calçada. O morto estava conversando com os vizinhos, como sempre fazia. Tranqüilo. Traquino. Mulher e filha aproximaram-se sem entender. O pai lhes respondeu que a única maneira de matar a saudade era com a notícia de sua morte. Não agüentava mais tanta distância. Certamente, a filha já tinha matado a vontade de ser professora; agora, voltasse para casa e matasse a saudade do pai. Aqueles meses sozinho foi um inferno em sua vida. Nunca mais ficaria só, nem se fosse um pedido do Presidente da República que dirá do governador.
Leocádia tinha que se contentar. Seu sonho, no Sertão, ou onde quer que fosse, não podia matar seu pai de saudade. E apenas com um telegrama com aqueles dizeres poderia trazê-las de volta. A educação dos sertanejos poderia ser feita por outras centenas de professoras nomeadas por o governador: professora Leopoldina, diretora Maria José Moritiba, professoras Iracema, Iluminata, Helena, Durvalina. Queria mais? Dona Marina, Ilda. Se eu for falar o nome de todas, eu não mato a minha saudade.

Maria do Socorro Farias Ricardo