Entre vivos e mortos

Quando Mário de Andrade pensou na morte, escreveu alguns versos nos quais expressou o desejo de ficar “Sepultado em minha cidade”: “Meus pés enterrem na rua Aurora, / No Paissandu deixem meu sexo, / Na Lopes Chaves a cabeça / Esqueçam”. Foi o momento mais melancólico da sua Lira Paulistana. E eu me lembrei desses versos quando, uma vez mais, visitei o Poet's Corner – o espaço solene da Abadia de Westminster onde estão enterrados ou homenageados bem mais de cem escritores britânicos. Há silêncio, há lápides e há estátuas por ali – tudo a provocar meditação. Os visitantes que passam, e sabem o que estão vendo, podem estar pensando no destino das obras de arte. Muitas foram esquecidas, ao que parece para sempre, e também arrastaram para o sumidouro o nome do autor: quem de fato continua a ler Richard Sheridan, o da comédia A escola para escândalo (1777), na época um dos maiores êxitos nos teatros de Covent Garden? Talvez a carreira política na qual ingressou, afastando-o da literatura, seja em parte responsável por tanto esquecimento. Morreu na miséria, mas encontrou seu cantinho nada obscuro por aqui, imortalizado em seu quase anonimato.

Tudo começou com Geoffrey Chaucer (1343-1400), ele mesmo, o autor do picaresco Contos de Canterbury. Foi o primeiro escritor a ser enterrado na Abadia, dando início a uma tradição a que presto de novo o meu tributo. E é quando percebo que tanto silêncio, tantas lápides e tantas estátuas produzem um tremendo tumulto e provocam em mim um sentimento irônico que só costumo experimentar quando converso com os vivos. Acontece que o meu estimado escritor medieval publicou naquele livro o conto “A esposa de Bath”, um dos mais admiráveis relatos sobre a vida de uma mulher. Peregrina, aparentemente devota, desdentada e opiniosa, ela se apresenta ao mundo como uma experiente conselheira para assuntos sexuais e matrimoniais, nessa ordem. Fala explicitamente dos seus cinco maridos, de alguns companheiros, do seu primeiro casamento, aos 12 anos, e da pouca importância da virgindade como atributo de uma pessoa boa e virtuosa. Ela é defensora e promotora da experiência e da vida real, e ignora com a força moral da sua autoridade todos os ensinamentos e tradições que os homens, sobretudo os homens, tentaram impor-lhe. O conto de Chaucer não esconde o prazer do próprio escritor ao construir personagem tão franca e desbocada; e também não disfarça o forte humor de quem questiona a fé com altas doses de realismo e de acuidade psicológica. Como escreveu Chesterton, “a ironia de Chaucer é às vezes tão grande que é muito grande para ser vista”.

Olho para os lados, percebo alguns turistas japoneses e australianos, mas lá no fundo, encostado numa coluna de mármore, está um padre que zela pela boa ordem das visitas. Penso em me dirigir a ele para lhe transmitir a minha revelação: “Veja bem, o primeiro escritor enterrado aqui era de fato um polemista, talvez um crítico impiedoso da fé e dos recursos que permitiram levantar tão bela abadia...”. Mas logo recuo, pois imagino que poderia receber uma aula sobre a tolerância, seguida de um argumento fulminante: “O senhor Chaucer está enterrado aqui não por sua obra literária, mas por seu trabalho como mestre de obras de vários edifícios e projetos do rei”. Dessa vez, portanto, a ironia estaria apontada contra mim, pois não considerei a importância de um bom emprego. Decido assim visitar outros túmulos.

Mas a ironia prossegue: nem todos os enterrados no Poet's Corner foram de fato escritores. Muitos fizeram carreira como autoridades religiosas, e agora se encontram aqui, no silêncio eterno, muito embora não se possa afirmar o mesmo de outro túmulo, o de George Frederic Handel. Para compensar tantas contradições, aqui encontro um escritor de escritores, Samuel Johnson, que entregou sua existência à composição do Dicionário da língua inglesa (1755) e do impressionante Vidas dos poetas ingleses (1781). Uso o adjetivo com muita segurança: é difícil não se emocionar com a destreza do crítico ao examinar a biografia e a obra de 50 poetas. Seu livro de crítica rivaliza com o dicionário não apenas por transmitir o poder de algumas das palavras que Samuel Johnson já havia indexado, mas também por salientar a importância do leitor, com quem o escritor parece conversar, sem imposições, sem esquemas de interpretação. Além disso, é preciso lembrar que quase todos os poetas estudados no livro viveram no século 18, o que revela a militância de Samuel Johnson no debate sobre a literatura do seu tempo. Quando consulto Vidas dos poetas ingleses, percebo que retirei da estante uma espécie singular de Poet's Corner: estão ali os esquecidíssimos poetastros, como esse tal de Thomas Sprat, e os poetas essenciais como Alexander Pope e John Milton. E, tal como acontece na Abadia, há silêncio, há lápides e há estátuas.

E continuo a caminhar no Poet's Corner, cada nome de escritor a disparar uma lembrança, como se eu estivesse diante da paisagem de uma vida. Aqui jaz Charles Dickens, que na verdade queria ser enterrado na catedral de Rochester; aqui jaz Rudyard Kipling, que sobreviveu ao estigma de ser apenas mais um imperialista. No solo da Abadia, ainda há memoriais a poetas enterrados em outros lugares, como o oferecido a William Blake, que, se não me engano, é considerado um santo pelos gnósticos católicos.

Terminada a minha visita, saio vivo e certo de que Mário de Andrade me trouxe uma lição sobre a posteridade: é melhor ser enterrado em diversas partes da cidade natal. Deixar alguns membros do corpo nas áreas onde foram mais significativos e usados. Ou então aceitar, com resignação, a definição da palavra morte tal como nos ensinou o doutor Johnson: “A extinção da vida; a partida da alma do corpo”.

Felipe Fortuna

Publicado no Caderno de Idéias do Jornal do Brasil em 11/02/2006
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