Bolo de Fubá

E de repente, sobre o balcão da sala de estar, surgiram os fantasmas. Contudo, antes da morte, minha vida era povoada de vozes – não as vozes e imagens que hoje voltimeia me perturbam, que esquálidas e petrificadas se colocam na entrada da porta do quarto e testemunham o sopor dos meus olhos insones , não... Da cozinha a nociva fragrância de nicotina eivava os corredores de casa. Meu pai, deitado no sofá, após o expediente, foi o primeiro fantasma que pude constatar em minha infância – um fantasma que num incrível orgulho paradoxal resolveu viver depois de morrer. Não havia os passos crepitantes de nenhum cachorro, minha mãe, na janela da cozinha, aguardava ansiosamente o bolo de fubá, para que, meia hora depois (não é um cálculo exato, mas digamos que trinta minutos sejam suficientes para qualquer espetáculo de lombrigas acrobáticas na barriga de uma criança) pudesse retirá-lo e servir com um bom café e pães fresquinhos. Nessa época não tínhamos microondas, nessa época ninguém tinha microondas nem Cd...O Dvd se sonhava existir, não passava de uma imaginação Jedi, em algum logradouro de Silicon Valey. Existia o bolo de fubá, o conspícuo bolo de fubá entremeado por canela e açúcar, somente o bolo de fubá.
Se Peirce ou Saussure estivessem vivos diriam que o bolo de fubá nada mais é que um signo mortuário, um símbolo áudio-visual do meu passado, um conceito de farinha, ovos e leite lingüístico predisposto na sepultura, ao lado dos crisântemos, um ícone funesto a devorá-lo com mãos famintas, estigmatizando anos e anos de meninice. Mas deixo de lado as premissas semânticas, saussurianas, seja lá o que for. Fiz uma ligeira constatação semato-culinária explicando melhor a representatividade de um bolo de fubá. Depois que minha mãe o desenformava, meu pai surgia. Éramos quatro, sem nenhum cachorro. Tínhamos um canário, porém não lembro ao certo se nessa época era o canário ou a codorna Galega. Enfim, meu pai, antes da cegueira arrastava seus pesados chinelos, numa paciência de Jó. Minha mãe, com a delicadeza de uma descendente de Pernambucana, gritava: “Vão lavar as mãos!”. Eu, ao contrário de meu irmão, não as lavava, até hoje não lhe acato o pedido e nem por isso contraí cólera. O bolo de fubá era a ecumênica personificação daquela vida familiar. Sentávamos a mesa e enquanto o devorávamos pedaço a pedaço, aquele silêncio arrebatador, divino, casto das horas de refeições nos contagiava. Ora ou outra uma pergunta ressonava pela cozinha. Juntos acompanhávamos o rasante de mosquitos na margarina. Lembro-me bem, minha mãe se apoderava de seu domínio: a janela da cozinha. Acendia o cigarro e com uma das pernas dobradas sobre o tornozelo, tragava sua incessante rotina de doméstica. Aquele gesto fugaz lhe fazia dispersar os anos, os funerais, as lágrimas, o silêncio de meu pai. Ficava ali, em pé, observando com adoração o final da tarde, como se o pôr do sol lhe revelasse algum impiedoso vaticínio.
E então, aos três ou quatro anos, vi meu primeiro cadáver: uma tia avó. Minha reação inicial foi de uma mulher dormindo – por que ela não acordara com tanta algazarra? Que sono fulminante lhe fazia cerrar os olhos por tanto tempo? Em que ela trabalhava para que o cansaço fosse imenso? Seria ela vigia noturno de uma rede de supermercados?, claro, ainda não deduzia tais coisas. As pessoas à sua volta, como numa reunião sindicalista, riam e falavam de situações diversas. A inquietação precípua estava diretamente ligada à qualidade da recepção. Uma prima esbaforida refazia de hora em hora a mesa do chá funerário. E a morta continuava a se preocupar com seu estado de morte. Não existe semblante mais bonito que o do morto. O morto é insolente até o amém do último momento. E na curiosidade de comprovar a qualidade de morte da falecida, buli suas pálpebras com uma indiscrição traquina, pronunciando, sonoro:
— Tá mimindo!
De longe minha mãe testemunhou. Naquela ocasião meus braços ganharam dois beliscões pela ousadia de querer fazer por ingenuidade o milagre da ressurreição. Sentei correndo no sofá mais próximo. Não falei nada com ninguém, encarcerei-me dentro de um eu tão pequenino, na época. E o bolo de fubá itinerante, em seu cinismo rotundo, ganhava bocas salivares. Nunca me esqueci dos mortos, nunca me esqueci da morte, menos ainda dos molares mastigando ávidos as fatias simétricas da iguaria. Uma certeza havia se apoderado de mim: eu iria morrer. E me explicaram, à medida que chorava copiosamente pelo braço dolorido, o sentido da vida. Mas no auge de minha infante obsessão queria que ao menos a finada provasse, num gesto derradeiro, o bolo de fubá, antes de, por definitivo, vestir seu traje de gala.
Quando meu pai, anos mais tarde, já acometido pelo glaucoma, resolveu nos contar que estava cego, não havia bolo de fubá. Na verdade não havia nada. Somente ele vagando por mesas, cadeiras e todo tipo de credo e amigos, desconhecidos, evangélicos, macumbeiros, visitas que tinham pena do homem que carregava consigo as trevas de um nunca mais. Até os doze anos não tive medo de morrer. Convivi com o breu, com a decrepitude, com aplausos absortos em festas de aniversário, com a morte rondando os cômodos da casa. Houve um momento em que na presunção de uma precoce adolescência me imaginei cego. Se hoje estivesse cego, pensaria como Borges, seria altivo como Borges. Talvez falasse de excrementos como Glauco Mattoso, lambuzaria meu rosto de excrementos como meu pai, viveria dos excrementos. Escreveria de ouvido, sonetos, redondilhas, romances e excrementos. Leria em braile, comeria sopa de letrinhas, defecaria o abecedário sem o K, W e o Y... O cego precisa até o último suspiro de vida de sua cegueira, há no cego a nostalgia da experiência, a segurança de ter resumido numa apoteose suas mais doces lembranças. Nada substitui as lembranças de um cego, nada.
Tempos depois, com a ausência paterna recente, entramos num período de moratória de bolo de fubá. Não que os funerais houvessem deixado de existir em nossa família ou que estivéssemos imunes às missas de sétimo dia, pelo contrário, as inumações, os defuntos, o salmo 23, as lágrimas, os véus umerais se tornaram assíduos coadjuvantes de momentos inesquecíveis. E o bolo de fubá, antes canonizado, nos confiava a título creditício uma condição que nada lhe agradava: bolo do mau agouro. Quero dizer que o seu caráter utópico, o seu estado inaugural dos cafés da tarde, acabara de ser desacreditado, o bolo já não era o mesmo bolo. Bastava-nos um simples lampejo de doença para que a família se reunisse e conferissem-no desprezo absoluto. Nossas tardes agora eram repletas de nega maluca, minto, nossas tardes nem sempre foram repletas de nega maluca após a morte de meu pai. No início tivemos grande turbulência financeira e os preços da cesta básica inflacionaram e o salário do funcionalismo ficou congelado por mais de dez anos...
No fundo, no fundo, minha vida caminhava contrária a essa estrada, numa oposição insofismável, num antagonismo paralelo ao amor de minha mãe. Era o pavor, o receio que não me fazia mistérios. Nossos diálogos seriam uma síntese de forasteiros, porque, em tudo, rivalizávamos. No luto só há solidariedade na chama de uma vela de sete dias. E quando, certa vez, ela categoricamente afirmou que eu não a amava, lhe respondi:
— Amo a senhora só que do meu jeito...
Meu jeito era o mais autônomo possível. Distante das balburdias e contendas familiares que nos cercavam. Fui o estranho no ninho por muitos anos. Exorcizava o afeto como quem afugenta cachorros de madrugada com espoletas. Sofrer novamente, jamais! Em seguida ela adoeceu, em seguida a hipertensão, em seguida o pré-infarto, em seguida a intervenção cirúrgica... Meu mundo ruiu. O bolo de fubá nunca mais seria feito pelas mãos trabalhadoras de minha mãe. E durante certa terça de carnaval ela sofreu a primeira parada cardíaca, sucedida de outras nove. Fiquei, junto de amigos, parentes e enfermeiros que por simpatia fizera amizade, na sala de espera da UTI, numa aflição tonitruante. As horas, naquele dia, se arrastavam por ambulatórios e filas do SUS. Segundos e minutos viviam uma realidade divergente da atmosfera enferma do hospital. Prantos incontidos ganhavam preces, recordações, desespero. Dr. Marcelo fazia de tudo para mantê-la com o mínimo de sopro provável. Doze horas de uma agonia flagelante. Com o fim da noite veio também à notícia estampada na face do médico:
— Ela teve uma parada respiratória de quarenta minutos...
Sempre esqueço de meu estado ao contrastar com o efeito daquelas palavras: “Minha mãe, um vegetal”, mas sabia que não existiriam milagres que lhe fizessem manter a lucidez. Estava tudo acabado e só precisávamos da confirmação. Voltamos para casa. Os retratos, a mobília, tudo como ela havia deixado, aguardava. Inclusive a morte, ceifando suas cutículas, ao lado das samambaias, esperava o instante para levá-la. De hora em hora o telefone tocava e nossas agonias aumentavam numa progressão implacável. Minhas tias da cozinha rumorejavam. Qualquer prenuncio de morte é um chocalho para os urubus. No meio da madrugada outro telefonema, mais amedrontador, mais insopitável. Era do hospital. Vinte minutos depois estava na capela mortuária ou como queiram pensar, no necrotério. Uma cicatriz de quase cinqüenta centímetros dividia o peito de minha mãe. A carne diáfana, pálida, sorrindo não anunciava indícios de sofrimento. Diferente do semblante penitente de meu pai, com uma gaze para segurá-lo a boca ou da face de abandono de meu avô ou dos traços angelicais de meu primo recém-nascido... Minha mãe parecia feliz com o seu fim, como se ela, uma solista de último ato, vivesse única e exclusivamente para aquele momento. Um momento de lamúrias, sem bolo de fubá, sem confetes e serpentinas. Numa quarta-feira de cinzas.

Diego Ramires