Volta ao pó

     Sempre quando passo na rua que dá para o cemitério em que minha mãe foi sepultada, começo a criar uma série de indagações para mim mesmo. Acho que o relacionamento da mãe com o próprio filho é um dos menos hipócritas entre os seres humanos. Esta é uma face empolgante da natureza: nas relações de preservação da espécie, temos de ser o menos hipócrita possível. Não porque queiramos, mas por ser assim determinado instintivamente. O filho, pelo contrário, aproveita-se dessa situação e escancara, porque sabe que a sua mãe sempre vai procurar protegê-lo.
     Não sei e realmente não quero saber quando vai ser a minha hora de voltar ao pó. Ainda bem que não temos dia e hora marcados para morrer. Porém, sobre o ciclo da humanidade, tenho muita curiosidade em saber quando e como vai acabar. É isso aí, leitor: um dia não haverá mais ninguém para contar a história. Mesmo que se queira pensar que nada acontecerá para terminar com as expectativas do homem sobre a face da Terra, o próprio sistema solar se encarregará disto. O Sol se extinguirá daqui a alguns bilhões de anos e a Terra será apenas uma massa escura e gelada, completamente desnorteada, vagando pelo espaço. Não sei se por otimismo ou por autodefesa, mas, com um fato desses, pensamos imediatamente no avanço tecnológico que já obtivemos e no muito que ainda vamos conseguir. Será possível, então, que, antes que o Sol se apague, já tenhamos conquistado outros sistemas? Pode ser, mas, sinceramente, não sei por quanto tempo mais Deus vai aturar o compartilhamento do seu mundo com uma espécie tão peculiar quanto a nossa. Mesmo vislumbrando a possibilidade de nos mantermos incólumes ou impunes, é importante pararmos para admitir, nem que seja por cinco minutos, que um dia tudo isto poderá deixar de existir.
     Voltar ao pó. Creio que, para cada ser humano, deveriam ser permitidos alguns minutos, antes da morte, para reflexões sobre a existência. O que fez de bom, o que fez de ruim, quantas pessoas sacaneou etc. etc. etc. Se realmente acreditamos na alma e na possibilidade de purificá-la, isto seria muito importante. Para quem ficou, o morto é apenas uma angústia passageira, mais forte ou mais fraca, dependendo do grau de relacionamento. Alguns conseguem ficar no firmamento das pessoas que não são nem parentes nem amigas próximas. Outros conseguem a façanha de embalsamarem-se na própria História. Esses são seres misteriosamente privilegiados, mas que, mesmo assim, continuarão existindo somente na esfera do abstrato.
     Então, no juízo final de cada um, deverão surgir algumas perguntas, tais como "Por que eu não tive o futuro que merecia?" Ou "Por que, mesmo sendo uma pessoa boa e generosa, eu estou sofrendo tanto para morrer?". Dificilmente, alguém vai admitir que passou pelo que tinha de passar ou que deixou de fazer o que mandava a sua consciência ao longo da vida. É, meus amigos: inclusive na hora da morte, a maioria barganha com Deus a sua existência terrena e a sua possível vida espiritual. Até com Ele mantemos uma certa relação hipócrita. É o preço da inteligência...
     A humanidade continua marchando tranqüilamente com seus passos de formiguinha. O indivíduo sente que já deu a sua contribuição e que já é hora de ir embora. Seria muito bom se todos tivessem esse sentimento n'alma: sentimento de vir, ver e vencer. Mas, infelizmente, isto não é possível. Se há um vencedor, também há um perdedor e este é o jogo. Assim são as guerras, assim são os esportes, assim é a luta pela sobrevivência. O mundo não foi feito para que todos sejam vencedores. Então, na hora de ver o morto, é muito mais fácil deparar-se com aquele que não conseguiu grandes coisas na vida do que com os heróis. Existe muito mais gente do que pedestais.

Felipe Cerquize