Dia Dois de Novembro

               Era bem cedo quando saí para caminhar com a intenção de ir até o "Campo da Saudade".
               Foi uma caminhada gostosa. A manhã estava fresca; o sol dava rápidos sinais de sua presença, mas logo se recolhia entre as nuvens, dando-me a impressão de que sabia que dia era hoje, e como todos,  buscava acomodar sua saudade.
               Enquanto me dirigia até lá, caminhando num ritmo mais lento, que condizia com as vibrações de meu pensar, ia observando tudo à minha volta.
               Bem em frente à entrada principal do cemitério, viam-se barracas e mais barracas montadas. Nelas, uma enorme opção de flores, entre vasos, arranjos na areia, e flores colhidas há pouco eram oferecidas por um preço competitivo. Também encontrávamos velas, muitas velas, de tamanhos e formas diferentes, e conforme as flores que você adquirisse, e o número de velas que levasse, ganhava-se o fósforo como brinde. Encontrei também uma barraca vendendo plano funerário, no qual por uma mensalidade bem acessível você garante seu enterro com todos os protocolos usuais. Flores, coroas e até cafezinho com bolachas para os “convidados”, de modo a não causar transtorno aos que sobreviverem a você. É... O que não encontramos na modernidade!
               Vaguei silenciosa, por um tempo, entre as barracas. Detinha-me no semblante das pessoas e assim passei boa parte do tempo, conjecturando os sentimentos que lia através dos olhos, expressões da boca, modo de caminhar e até como se moviam ao se dirigirem as barracas e escolherem as flores; ouvia atentamente as conversas dos passantes, admirando-me cada vez mais.
               Ao lado destas, em local nobre, havia uma barraca de pastel. Muito bem arrumada, com acomodações razoavelmente confortáveis e um sem fim de cadeiras para que todos pudessem saborear o pastel de sua preferência com conforto. E estava lotada, não havia uma só cadeira vazia, entre tantas mesinhas esparramadas ao entorno da barraca. Fiquei entretida com esta cena, e sem querer olhei para o relógio. Nove e dez. Já fazia uma hora que eu havia saído de casa, e até me espantei, pois não havia percebido que o tempo havia passado tão ligeiro. Pensei comigo: Essas pessoas devem ter saído de madrugada de casa... Ou não conseguiriam alimentar-se de modo tão voraz a esta hora da manhã.
                Dirigi-me a uma das barracas e indaguei sobre o preço das flores. Minha mãe adorava rosas, eram suas flores favoritas e sempre que posso escolho rosas para levar até o jazigo da família. Entretanto, as coisas mudaram muito, e precisamos considerar outros fatores, alem da vontade pura e simples de agradar quem amamos. Por conta da dengue procurei arranjos feitos em areia com esponja. Encontrei crisântemos brancos, lindos, tão viçosos que pareciam estar felizes no local onde se encontravam confinados.
                Assim, escolhi dois deles, comprei as velas maiores que já me davam direito ao fósforo e saí sentindo-me bem acompanhada, pelas emoções suaves que me vinham das flores que carregava entre meus braços.
                Engraçado, sinto-me tão bem neste campo da saudade, e nada tem de nefasto este meu sentir. Minha cidade tem um cemitério todo arborizado. Embora os túmulos sejam aos moldes antigos com jazigos enormes, grandes estatuetas, junto a outros pequenos e modestos, o visual geral é agradável, principalmente porque os moradores vivos de lá, gostam de se manifestar constantemente...
               Pássaros. Muitos e de diversas espécies habitam o local e quando caminhamos por entre as ruas organizadas neste campo da saudade, vamos sendo acompanhados por uma sinfonia tão bela e suave que ameniza os sentimentos tristes que por ventura nos acompanhem.
               Alguma coisa em minha alma se enternece quando passeio por lá. E a saudade que me toma todo o espaço do coração, ao invés de machucar-me, acolhe meu sentir como um longo e apertado abraço. Tudo ali me conforta e me faz respirar fundo, sentindo o ar da vida, o aroma das flores, vibrando em consonância com o cantar de meus queridos e singelos companheiros.
               Há uma aguda percepção de que a vida é constituída desta Unidade, um mosaico infinito que compõe nossos dias e enfeitam nossa rotina.
               Por fim, cheguei ao meu destino. Tudo estava limpo, lustroso, apenas sem flor, mas pronto para recebê-las, tal a ordem que havia em suas floreiras e jardineira. Não me movi por longo tempo, ficando ali em pé, frente ao local onde alguns de meus amados se deitaram pela última vez.
               Chamei pelos que ali não estavam sabendo que nada os aprisiona e que a vida segue a livremente a eternidade, rumo à evolução. Fechei os olhos e me deixei levar pela memória...  Ah! O sorriso do vovô quando terminava de cantar uma modinha ao violão e então contava histórias que nos encantavam tanto... O som da voz da vovó, me chamando de "cotica" e contando tantas coisas importantes a respeito de Deus... Senti o toque de minha maninha, tão querida e que há muito se foi. Logo o olhar de meu pai, um olhar que na verdade não me lembro, mas que memorizei através das fotos espalhadas em nosso lar... Um olhar sério, compenetrado, um tanto enigmático que trago impresso no coração como um sinal de compromisso. A essa altura meus olhos já não continham as lágrimas, e o espírito agoniado foi de encontro à imagem da mãezinha. Sorrindo, acolhendo-me no colo e apertando-me nos braços... E como por encanto o cheiro dela me envolveu,  fartando minha alma de carinho e a certeza de que ela estava ali...
               Subitamente abri os olhos e deparei-me com algumas pessoas paradas ao meu lado olhando-me fixamente. Sobressaltada ao ser arrancada de uma dimensão tão sutil, fechei novamente os olhos, apertando-os sem saber como agir. Aos poucos tornei a abri-los... E lá estavam eles, olhando-me sem se moverem.
               Embora não levando a mal, me senti constrangida e como se devesse alguma satisfação, comentei sussurrando olhando para eles: que bom podermos conversar com nossos amados que já se foram não? Sem esperar resposta, claro, fechei novamente os olhos pedindo a Deus que me inspirasse, pois apenas desejava permanecer silente por um tempo ali, junto ao túmulo da esquina da Rua 6.
               Espiei pelo canto dos olhos para ver a reação deles e então, abri rapidamente os olhos, ambos e bem arregalados, pois haviam sumido! Céus! Eram idosos, pesados e não imagino como poderiam ter tal agilidade para esta proeza, mas enfim... Conseguiram.
               Enfeitei o jazigo acendi velas e conversei com cada um, um pouco mais,  para então me despedir e sair.
              Voltei para casa dividia entre a melancolia da lembrança e as conjecturas a respeito de tudo que vi nesta manhã...
              Não associo esta data com tristeza, mas com proximidade, com recordações e com momentos de reverência, quando nos sintonizamos com a Vida de modo natural e sem a barreira da materialidade.
             Quanto à saudade, bem... Ah! A saudade!
             Cheguei em casa e fui preparar o almoço, enquanto cuidava de minhas plantinhas em meu pequeno jardim...

Priscila de Loureiro Coelho