O ponto final

LONDRES - Vivi em Santa Teresa por quase 30 anos. Cheguei a escrever o mais provinciano dos livros – Curvas, ladeiras: bairro de Santa Teresa (Topbooks) –, com fotos minhas, inspirado prólogo de Christine Ajuz e uma edição caprichada de José Mario Pereira (ambos, marido e mulher, ex-moradores da rua Aarão Reis, uma das ladeiras mais íngremes do mundo). Sim, dificilmente seria possível produzir bairrismo maior. No livro, misturei a pesquisa histórica e a memória de quem viveu da infância à vida adulta lá no alto do Rio de Janeiro. Concordei com a opinião emocionada do filósofo Cioran, para quem “se a palavra nostalgia tiver algum sentido, será pela tristeza de haver deixado o lugar onde nasci e onde morei, pois o único mundo verdadeiro é o mundo primitivo”. Por fim, escrevi o livro em Londres, tocado pela morte do meu pai e pelo fato de haver deixado o Brasil para me fixar em outra cidade.

O símbolo do meu bairro ainda é o bonde. Mas, pelo que sei, como escassearam os bondes! Eu costumava viajar pelo menos duas vezes por dia, conhecia bem os horários. O último bonde para o Dois Irmãos deixava a estação próxima à rua Senador Dantas um pouco depois da onze e meia da noite: quando se aproximava, com suas rodas de ferro, da entrada da minha casa, eu saltava do bonde em movimento. Eu era jovem. Mas sabia que parte dessa história poderia desaparecer muito cedo, por irresponsabilidade dos que não preservam a memória da cidade. Atualmente, o bonde não é mais uma opção confiável de transporte.

Pensei que, ao menos em Londres, eu veria maior respeito para com os símbolos urbanos, especialmente os que servem à população e são vitais no corre-corre diário. Que nada! Acabam de aposentar o Routemaster, aquele ônibus de dois andares e plataforma sempre aberta para entrada e saída dos passageiros, além das características que lhe davam a impressão de um design desatualizado. Um ícone tão expressivo que por muitas décadas ainda sobreviverá na forma de ímãs de geladeira e de brinquedos e miniaturas. Mas o fato é que o ônibus se foi – um pouco depois do seu criador, Douglas Scott (1913-1990) – e somente sobreviverá em duas linhas que servirão aos turistas, em horários bem limitados.

Eu mesmo fui – para abusar do paradoxo – um assíduo passageiro do Routemaster. Inúmeras vezes peguei o 159 por conta de afazeres profissionais – e o ônibus me deixava em frente à sede da Organização Marítima Internacional, em Albert Embankment, de onde também se pode avistar o Parlamento no ângulo típico dos cartões postais. A viagem produzia aquela relaxante sensação de que a cidade se comunicava com todos, sem que estivéssemos dentro de uma cápsula. Houve muita demonstração de saudosismo e até alguns pequenos protestos, logo ridicularizados pelo prefeito. Pois assim caminha a humanidade: os sentimentos são triturados pelo progresso, e todos esquecem que o mesmo Routemaster deve ter substituído alguma parafernália antiga ou ter sido criticado quando entrou em operação.

O ônibus finado surgiu no ano de 1956 e deu início à capacidade londrina de saltar de um veículo em movimento. Um filme do mesmo ano, Loser takes it all (“O perdedor leva tudo”), com roteiro de Graham Greene, eterniza nas cenas iniciais a vida de um burocrata que pula para entrar e para sair do ônibus, quando vai e quando volta do trabalho. O fato é que o Routemaster tinha mesmo um significado forte na vida da cidade: as responsabilidades estavam divididas entre o motorista e o cobrador, este último quase sempre um imigrante indiano ou paquistanês. Atualmente, os motoristas dos novos ônibus fazem todas as operações – dirigir o veículo e cobrar as passagens –, o que revela uma lógica econômica incontornável. O impacto do fim do Routemaster foi tão grande que um grupo intitulado Emotional Designers criou um site (www.routemasters.co.uk) em que as fotos dos antigos empregados, ao lado dos ônibus, são acompanhadas por música de cortejo fúnebre. É a tecnologia prestando homenagem ao que a tecnologia substituiu.

Na paisagem da cidade, prevalecem agora os bendy buses, espécies de ônibus sanfonados; e ainda muitos double deckers, com os característicos dois andares, porém mais parecidos com caixas de sapatos sobre quatro rodas. No debate dos jornais sobre a extinção do Routemaster, um leitor e possível semiólogo descobriu que os novos ônibus também são binários, pois só permitem abrir e fechar as portas; parar no ponto ou se mover. Decretou-se o fim, portanto, dos estados intermediários. Talvez eu compre o livro de Travis Elborough, The bus we loved (Granta), que comenta a relação da cidade com o Routemaster no plano de um affair. No meio tempo, estou de acordo com o mais recente artigo de Umberto Eco, publicado no L'Espresso deste início de 2006, no qual o escritor pergunta se não deveríamos, a fim de salvar o planeta, impor mudanças mais lentas em nossas vidas. A aceleração e o excesso de velocidade constituem uma doença dos tempos modernos e têm produzido, em geral, uma obsolescência rapidíssima que deturpa a noção de progresso. Em seu lugar, surge a “inovação regressiva”, a produção de detritos em nome da vertiginosa substituição dos objetos. De fato, precisarei reconhecer que, pelo menos em Santa Teresa, um ou outro bonde continua passando, e isso desde 1896. Já o Routemaster, com apenas 50 anos de vida, se transformou em passado. Embora o mundo seja veloz, ficou mais difícil chegar ao ponto final.

Felipe Fortuna

Fonte: Jornal do Brasil - Cad. Idéias, 7/1/2006
Enviado pelo autor

« Voltar