UMA HISTÓRIA DE MINHA VIDA

Noite quente na capital do estado mineiro, Belo Horizonte ferve pelo número de pessoas nas ruas e principalmente pela badalação dos jovens no sábado. Três amigos e eu, um grupo formado por dois homens e duas mulheres, finalmente, havíamos encontrado um local para estacionar o veículo que nos conduzia para mais uma curtição da noite. Entramos na primeira casa noturna que encontramos, o garçom logo veio nos atender muito cortês, como é costume nos garçons por causa das famosas gorjetas. O pedido foi unânime:
— Queremos Coca-Cola! Uma de 600 ml para cada um.
O outro homem do grupo quis um copo para tomar aquele líquido tão esperado; as mulheres preferiram usar a tecnologia de um canudinho na própria garrafa; da minha parte foi mais radical, preferi tomar direto na garrafa. Assim que o garçom voltou com os pedidos, peguei a minha garrafa da bandeja com pressa, girei imediatamente a tampa e sem muita cerimônia coloquei na boca aquele líquido saboroso. De repente e sem explicação lógica, um sentimento nostálgico, virtual invadiu totalmente o meu ser. Tentei em vão voltar à realidade, mas os pensamentos do passado eram tão fortes que perdi a consciência do tempo presente. Então voltei ao meu tempo de infância, meus pensamentos transformaram-se em poesia e passei a ser escritor da minha história. Que pode ser assim contada.


* * *

A minha infância e adolescência foram vividas na zona rural do interior mineiro, em uma fazenda que ficava muito distante da cidade mais próxima. A fazenda era conhecida como Rancho Vargem Grande, devido ser quase toda ela uma planície rodeada por morros bem suaves ao longe. Os meus pais trabalhavam com muita dificuldade para sustentar os sete filhos, quatro homens e três mulheres, dos quais eu era o filho do meio, com oito anos. Ser o filho do meio era algo muito complicado, ou seja, um pouco desfavorável, pois não tinha nem idade para realizar as aventuras dos irmãos mais velhos e nem era suficientemente criança para exigir condições de atenção especial como faziam os caçulas, mas este fato em momento algum me atrapalhava, pois era um garoto muito arteiro e inventivo. A casa em que morávamos tinha apenas três cômodos de chão batido, isto se for contar uma varandinha feita de folhas de coco; não havia banheiro e energia elétrica não sabíamos o que era. O fogão era de lenha e! as panelas estavam gastas pelo tempo. Aliás, tudo ali merecia uma reforma urgente, mas que era impossível de acontecer. Apesar de todas as adversidades, éramos uma família unida e muito feliz.
O momento mais esperado por toda a família era o final do mês, em que o meu pai recebia seu pequeno ordenado de vaqueiro e minha mão partia em uma longa viagem, a pé, até a cidade mais próxima para realizar as compras mensais. Na verdade, o que mais nos deixava ansiosos não era a sua viagem e muito menos o seu retorno em si, mas um precioso produto que acompanhava as compras; um objeto do nosso desejo de criança, que aos poucos ia tornando-se sagrado em nossas vidas e em nossas fantasias: uma garrafa pequena de Coca-Cola de aproximadamente 300 ml. Sempre no último dia do mês minha mãe levantava-se com a madrugada, dava um beijo carinhoso em cada um de nós seus filhos e saía sorrateiramente sem dizer uma palavra, mesmo sabendo que estávamos fingindo que dormir. Quando ela batia a porta para sair, pulávamos da cama imediatamente. Enquanto ela caminhava na estrada empoeirada em direção a cidade, ficávamos olhando da varanda o seu corpo, maltratado pelo tempo e pela labuta diár i! a, sumir no horizonte, antes dos primeiros raios do Sol. Em algumas vezes, corríamos atrás dela e quanto abri a porteira da fazenda, gritávamos:
— Não vá esquecer a nossa Coca-Cola.
Com um sorriso de cumplicidade, ela virava lentamente para o nosso lado e fazia um gesto de “vou pensar”.
Durante aquele dia todo, ficávamos brincando próximos da Casa Grande, morada dos patrões e de seus filhos esnobes. O que ocorria na verdade, era que servíamos aos caprichos dos filhos dos patrões em suas brincadeiras: se eles fossem os policiais, nos éramos os bandidos que apanhavam e eram presos; e se eles fossem os médicos, nós éramos os pacientes, que tomavam as injeções e bebiam os remédios de mentira. Próximo do entardecer retornávamos à varanda para ver ao longe o corpo de nossa mãe tomando forma por detrás da colina. Quando notávamos que realmente era ela, saíamos correndo em sua direção.
Ao chegarmos perto de nossa mãe, um de nós era escolhido para puxar o assunto:
— O dinheiro foi suficiente para realizar a compra toda?
Nossa mãe desconversava e perguntava se nosso pai já havia chegado do trabalho. Respondíamos que sim ou não, com um gesto da cabeça e tornávamos a insistir:
— Mamãe deu para comprar tudo o que queríamos este mês?
A insistência na pergunta, escondia em suas entranhas a ansiedade de todos nós em saber se o objeto do nosso desejo fora comprado. A nossa mãe, transfigurada pelo cansaço da longa viagem, não expressava qualquer reação frente à pergunta, o que aumentava ainda mais a nossa expectativa. Nós sabíamos que a cada novo mês o dinheiro que nossa mãe levava para cidade, dava para comprar menos alimentos. Naquele tempo, a compra toda se resumia em uma “sacola de mão” pela metade.
O caminho até nossa humilde casa era tomado pelos causos que nossa mãe contava de como estava a cidade e suas pessoas insensíveis à realidade de quem vivia no campo. Chegando em casa, a sacola de compra era colocada em cima de uma pequena mesa no centro da cozinha. Em sua volta, ficavam os nossos olhos insistentes e curiosos a tentar descobrir o esconderijo da garrafa de Coca-Cola. Nossa mãe ia retirando muito vagarosamente as compras da sacola, às vezes fazia um gesto de que não havia mais nada para ser tirado. Em um momento mágico para nossos olhos petrificados pela expectativa, víamos surgir a tão esperada garrafa de Coca-Cola. Em reverência, encostávamos somente a ponta do dedo indicador naquela pequena garrafa com aproximadamente 300 ml de líquido precioso. A garrafa já estava com a temperatura ambiente, mas as minúsculas gotas de água envolta dela sinalizavam que havia saído bastante gelada de uma geladeira ou congelador de um bar importante, pois somente os melhores bares das cidades possuíam na época garrafas de Coca-Cola.
Geralmente neste momento, o nosso pai já havia chegado em casa e passava a ser cúmplice daquele ritual familiar. A nossa mãe tomava ares de juíza e passava ao rito de repartir entre nós aquela bebida dos deuses. Nós sabíamos o quanto era sacrificado para os nossos pais comprar aquela garrafa de Coca-Cola e principalmente por deixarem de tomar o refrigerante para deixar para os sete filhos. Nossos únicos seis copos eram colocados sobre a mesa; assim, um de nós era escolhido para tomar a Coca-Cola diretamente na garrafa, o que tornava o momento mais emocionante. Minha mãe dizia:
— Quem quer tomar a Coca-Cola “na boca da garrafa”, levante a mão.
Todos levantavam as mãos e assim permanecíamos enquanto ela repartia a pequena Coca-Cola entre os copos corroídos pelo uso. Em cada um dos copos era colocado pouco mais que a medida de dois dedos na horizontal, mas representava um incalculável tesouro para nós crianças sem qualquer perspectiva de riqueza no momento. Uma grande expectativa, muito próxima do êxtase, tomava conta do ambiente. Para que nada do líquido caísse na mesa ou no chão da cozinha feito de terra, era colocada uma bacia sobre a velha mesa, os pingos que ali caiam eram imediatamente reaproveitados. Os nossos corações batiam a toda velocidade, em controvérsia com o nosso corpo totalmente retraído acompanhando os gestos suaves de nossa mãe. No decorrer deste processo sagrado para nós, as nossas mãos que estavam estendidas na vertical, começavam a ser vencidas pelo cansaço até ficar somente o vencedor de mãos para cima: o grande vencedor, aquele que teria o grande prazer de tomar a Coca-Cola diretamente na ga r! rafa. Nossa mãe era uma mulher de poucas palavras, ela olhava para nós com carinho e com um gesto das mãos indicava que estava na hora de bebermos a nossa fração da Coca-Cola.
Mãos trêmulas aproximavam-se dos copos e da garrafa. Naquele dia, era eu o felizardo que tomaria a Coca-Cola na “boca da garrafa”. Confesso que não lembro de nenhum outro fato da minha infância que fosse mais emocionante que este momento em especial. Em um gesto sincronizado levávamos o líquido à boca. Naquele momento deixávamos de ser apenas crianças pobres e sem expectativa de vida digna, tornávamos reis e rainhas, nos assemelhávamos às crianças filhas do dono da fazenda e às crianças que moravam em belas casas na cidade. Tomar Coca-Cola, para nós, era recuperar a nossa dignidade, sentir que éramos iguais aos poderosos de todo o mundo. Quando a minha boca encontrou a “boca da garrafa” de Coca-Cola, naquele dia, senti que estava suspenso no ar, que uma força maravilhosa invadiu todo o meu ser. A Coca-Cola era tomada devagar como que para eternizar o momento, com aquela sensação gostosa de felicidade frente ao nosso objeto de desejo. No rosto de nosso pai e de nossa mãe, um s! orriso maroto sinalizava a sensação do dever realizado mais uma vez, mesmos não sabendo por mais quanto tempo ainda seria possível realizar aquela extravagância da nossa ilusão de crianças utópicas.
Assim foi passando os nossos dias, e com eles a nossa infância. A minha infância pobre, mas feliz...

* * *

Um som estridente, de uma garrafa caindo no chão e quebrando-se em cacos, tirou-me do estado de nostalgia, de lembranças. As pessoas ao meu redor pareciam tão distantes e impessoais; quis voltar aos meus pensamentos de infância, mas eles fugiram para o infinito do meu inconsciente.
Agarrei a garrafa de Coca-Cola, que estava sobre a mesa, com mais intensidade, na verdade como um guerreiro que segura sua caça mais preciosa, como um jogador que acabou de ganhar a sua taça e não quer separar-se dela. Olhei para aquela garrafa e procurei visualizar o passado. Agora, de forma bem diferente de minutos atrás, quando o garçom entregou a Coca-Cola e a tomei com violência, levei a garrafa até a minha boca devagar e comecei a beber aquele líquido em pequenas porções. Bebia sentindo não só o seu sabor, mas também o seu significado para toda a minha construção de vida, como escritor que lê e escreve a própria vida além das aparências. Uma sensação inigualável traspassava o meu peito, sensação esta que procuro levar para o infinito da imaginação e para a veracidade do concreto, em todo os momentos da minha existência.

José Maria Cardoso

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