PADRÃO DISTORCIDO

Morei na Europa, mais exatamente na França, por cerca de um ano, na qualidade de bolsista acadêmico.
Antes de viajar para lá, recebi uma publicação denominada: "Sensibilizador Cultural", cujo objetivo era alertar sobre usos e costumes locais e, assim, evitar surpresas, gafes ou constrangimentos. Cá entre nós: isso é tão importante, como conhecer o idioma do país visitado! De fato, as orientações foram extremamente úteis, em situações formais; mas, da mesma forma que os professores de cursos de línguas sentem-se desconfortáveis quando o assunto é o ensino de gírias, os sensibilizadores culturais também são reticentes, ou omissos, em abordar certos comportamentos e "etiquetas", "oficiosos". Essa postura "politicamente correta", no entanto, pode nos colocar em situações complexas, como uma, que ocorreu comigo durante uma viagem de trem:
Na mesma cabine viajávamos: eu e um jovem casal de portugueses. Todos tínhamos a mesma faixa etária, e não tardou a entabularmos uma animada conversa.
Numa das estações, um rapaz veio juntar-se a nós. Sentou-se num canto, calado e arredio, e assim ficou por algum tempo. Não nos sentimos à vontade em vê-lo isolado. O casal, que beliscava uns salgadinhos, ofereceu-os a ele... " Non , merci !", foi sua resposta tímida, e a "deixa" para trazê-lo para a roda de bate-papo, afinal, todos falávamos francês.
Quando eu soube que ele era de Bayonne , comecei a cantarolar uma música tradicional, e muito sem-vergonha, que havia aprendido depois de algumas cervejas, nas festas da escola, sobre aquela cidade. Ele riu e começou a falar e brincar à vontade, contrastando com sua postura anterior, quase depressiva.
Quando chegamos a Bayonne, nós nos despedimos dele e, num gesto de camaradagem, estendi a mão, para cumprimentá-lo e desejar-lhe boa sorte... Para minha surpresa, ele estendeu sua mão, largou algo na minha,   e saiu, rapidamente...
Olhei para o objeto: um "pellet", semelhante os de alguns tipos de rações para animais; e, curioso, perguntei ao casal português: "O que é isso?". Eles imediatamente identificaram: "É haxixe! O cara foi muito legal com você!".
Eu - que nem cigarro fumo - imaginei que fim daria àquilo... Temi que, por um daqueles azares " murphyanos ", algum policial aparecesse na cabine. Lembrei do filme "Expresso da Meia-Noite", e dei graças a Deus por não estarmos na Turquia... "Legal"?
Os portugueses, ao verem que eu não me entusiasmara com o "presente", disseram: "Se você não quer, nós queremos!", e o pegaram, cheios de excitação.
Bem, até onde eu fui educado e acostumado, amizade é expressa com um aperto de mão, um cafezinho, um chope e, principalmente, com um apoio edificante, num momento preciso... Nunca imaginei que oferecer droga, na cabeça de alguém normal , fosse símbolo de gentileza. Só uma mente deturpada para acreditar que compartilhar uma seringa, oferecer um "pedra ", passar um "baseado" ou mesmo um cigarro é sinal de camaradagem! Pode ser de apelo à cumplicidade, mas de amizade nunca! Isso não é ser amigo: É ser carrasco! É uma total distorção de valores!
O sensibilizador cultural não falava disso, nem os programas de TV que eu via, lá, e que sempre davam a idéia de que esse comportamento esdrúxulo era coisa exclusiva do "Terceiro Mundo "...
A publicação ajudou, sem dúvida; minha formação familiar, também; mas, a atuação de meu "Anjo da Guarda" foi imprescindível! E com ela veio a perspicácia.
É certo que existem pessoas boas e más, em qualquer parte do mundo; mas, em certas situações, eu prefiro continuar sendo um " caretão " do "Terceiro Mundo". Guardo meu espírito transgressor e inconformismo para coisas mais úteis, e menos prejudiciais a mim mesmo e ao próximo.

Adilson Luiz Gonçalves

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