O RELÓGIO DAS ÁGUAS
FLAVIO GIMENEZ
Subindo ao sótão - O Relógio das Águas - Flavio Gimenez - fls. 05 - Blocos Online

A velha ameixeira

O cinza chumbo do céu prenunciava chuva e das grossas, daquelas que enchem as ruas de água transbordante. Nesses dias assim ele preferia ficar recolhido em seu canto. O seu canto uma casa esquinada bem proporcionada, que fizera parte de sua família há anos e que ele resgatara quando estivera próxima de ser leiloada por falta de pagamento de seus impostos. O antigo inquilino a abandonara completamente, as calhas estavam furadas, as janelas pensas batiam nas ventanias, as portas tinham cupim e o assoalho desabara na sala de estar, de umidade e de falta de cuidado. Desleixo mesmo. Ele nem fora avisado disto, apenas soubera da iminente ruína da casa quando lhe disseram que deveria regularizar urgentemente a situação do imóvel. Essa casa lhe trazia lembranças, fora a sua morada nos anos de sua distante infância, quando brincava com os irmãos nos fundos, onde havia uma edícula habitada por Mercedes, sua mãe negra, e Ortiz, seu marido que invariavelmente chegava bêbado, desorientado. Mercedes tinha uma voz poderosa, seus gritos para conter as traquinagens dele e de seus irmãos eram ouvidos de fora da casa. Na frente da edícula, uma maravilhosa ameixeira que nos meses da primavera ficava com a copa prenhe de folhas e flores ocultando os três irmãos no meio da espessa folhagem. Eles se escondiam lá quando percebiam que a situação era grave e também para olhar os pássaros que a habitavam. O inquilino a serrara na base.

Em meio às dolorosas lembranças ele reformou a casa. Começou pelo telhado arruinado, telhas quebradas e forro podre. Muitos ratos e morcegos foram enxotados, mas ele achou coisas interessantes no sótão: Uma chapa de pulmão antiga que havia sido feita em seu avô tuberculoso; uma bolsinha de mulher que fora de sua prima e que ela esquecera em casa no dia em que ele e ela se encontraram secretamente no sótão, numa brincadeira que por um triz não encerra sua infância precocemente. Ele olhava a bolsa e se lembrava dela, grandes olhos castanhos, a testa alva e o sorriso que já deixava os anos inocentes para trás, cônscia de seu poder de sedução. Um alvo pescoço e orelhas bem formadas com voz de ninfa.

“– Primo!”

Era assim que o chamava, sempre a lhe contar as novidades de seu desabrochar de menina-mulher. Quando terminou o telhado, passou a trabalhar junto com os pedreiros na recomposição do interior de sua velha morada. Canos furados acentuavam o desgaste e um vazamento secular foi resolvido, para a graça de seu vizinho que tinha mofo em sua sala de estar há anos. O inquilino nem se importava mais com os queixumes dele, simplesmente omitira tudo. Incrível como ele pudera deixar as coisas ficarem assim. Era o que sempre dizia sua mulher, também já entrada em anos, mas férrea em suas colocações. Ela havia sido o esteio de seu lar desde que haviam casado. Sempre o pusera para frente, sempre o elogiara em suas quedas que não haviam sido poucas. A crítica dela tinha fundamento, era que ele de certa forma era omisso e isso o magoava; no fundo reconhecia seu comodismo. Agora, ao reformar sua velha casa, pretendia dar uma espécie de retorno ao mundo e com isso de certa forma mostrar que de omisso ele não tinha nada.

“– Primo! Vamos brincar?”

“– Aonde?”

“– No sótão!”

Ele se lembrava do descompasso de seu coração ao olhar aquela menina que se transformava em mulher e sorria. Os anos passam, mas nossa energia juvenil conserva-se como se dentro de uma cápsula do tempo e ele se orgulhava de saber que toda vez que quisesse poderia evocar aqueles momentos mágicos que passara com ela, em diversos tempos.

– O senhor vai querer uma parede inteiriça ou vai querer que aqui coloquemos um, digamos, elemento vazado?

– Eu preferia assim. Na verdade, gostaria que essa parede pudesse ser de vidro; mas não tenho dinheiro para tanto!

Quando ele reformou a sala de assoalho afundado pode verificar que por pouco parte da casa não desabara, vítima de um solapamento de terreno oriundo de águas subterrâneas de uma antiga galeria pluvial que passava sob seu terreno. Tratou de providenciar que ela deixasse de existir, reforçando com concreto as bases da velha casa abandonada e que agora se revitalizava, tomando a forma de antigo rejuvenescido, elegante e formoso.

“– Primo!”

Ela lhe contara que tivera uma experiência com um homem mais velho, bem mais velho que ela e ela queria que ele soubesse que ele fora importante para ela, de modo que se apaixonara. Na verdade, ela iria se casar, isso tudo com seus quinze anos!

“– Casar?”

“– Sim! Ele é o homem da minha vida! É perfeito, tudo em seu lugar!”

“– Mas você tem 15 anos e ele quarenta. Não vai dar certo!”

“– Diferença de idade não me interessa!”

Ele saiu emburrado da conversa e ela toda feliz foi-se embora para casar com seu príncipe quarentão. Tomara desse certo, ele pensou com força ao subir a escadaria da igreja, rezando não encontrá-la ali; mas lá estava ela, mais linda que nunca, com os olhos postos no noivo que a beijava apaixonadamente. O tempo provaria a ela que ele estava certo, afinal. Uma relação como aquela sustentava-se enquanto havia saúde, e ela não tinha a mínima idéia do que viria a seguir, sem que ela pudesse interferir.

– Aqui. Aqui quero uma espécie de átrio. Vou colocar certas coisas aqui que quero que sejam vistas, ao se subir a escada para o sótão.

O sótão ele transformara em seu escritório, onde ele escrevia cartas, onde tocava seus discos prediletos e onde se punha a olhar a vizinhança, cercado das boas lembranças e das árvores que se tornaram gigantes com o passar do tempo. Sua casa, na rua, se destacava e paulatinamente foi atraindo mais gente interessada em recuperar o tempo perdido; várias casas velhas então rejuvenesceram e ele viu com orgulho que seu trabalho começava a dar frutos. Mais de uma vez recebeu propostas milionárias para vendê-la. Quando finalmente terminou o que se propusera fazer, resolveu fazer uma surpresa a sua companheira de anos e anos, de modo que a buscou em sua casa atual e a levou para ver a obra. Desde o portão as primaveras acenavam. As Sete-Léguas faziam filas de flores e os pés de Manacá da Serra enchiam de flores brancas e roxas o caminho que ele fizera e que guiava quem entrasse pela escadaria adentro, cercado de rosas, azuis, brancos e perfumes. Ela andava com dificuldade, mas resistira ao tratamento; os médicos diziam que em questão de meses tudo se acabaria. Ele, resignado, resolveu fazer o que havia prometido a si mesmo, desde que olhara a velha casa. Abriu a porta da sala, luminosa, com grandes janelas de vidro e tapetes como ela ousara sonhar em sua antiga morada. Levou-a até o pé da escada. Não foi surpresa quando ela chorou ao subir a escada em direção ao sótão.


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