O RELÓGIO DAS ÁGUAS
FLAVIO GIMENEZ
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Que domingo!

O medo bateu à sua porta, bordejou sua consciência como um avião sem teto rodeia o aeroporto antes de despencar das nuvens. Ele, suado, gotas grossas escorrendo-lhe pela testa, porejando em um indefinido ritmo, arquejava agora depois da corrida que o salvara por pouco. Ele parou, arfando. Revisou a situação. Era domingo, era de manhã e o sol batia nas árvores silencioso como sempre, ele resolvera fazer uma caminhada, após o suave banho matinal e logo depois de jogar seu game favorito (era mais um viciado em games e o Pacman era seu predileto) pois seu médico lhe alertara sobre os perigos do sedentarismo. 

Então ele desceu pelo elevador e notou a primeira coisa estranha. Pelo adiantado da hora — deviam ser dez e meia — certamente mais pessoas deveriam estar descendo e congestionando o maldito elevador de seu prédio de meia idade, meio velho como ele, muito moço ainda para perder as esperanças. Entrou no elevador e ninguém subiu, ninguém desceu. Ninguém com aquelas caras enfarruscadas de vizinho chato a desejar:

– Bom dia!

Ninguém de sorriso forçado, ou disfarçando, olhando o molho de chaves, o chão ou passeando os olhos pelo teclado do celular último tipo. Nenhuma pessoazinha sequer e nem as clássicas velhinhas a comentar sobre o tempo:

– Hoje finalmente temos sol não?

– Verdade!

– Tempo esquisito em São Paulo. Também, agredimos o meio ambiente, ele nos agride de volta! Esses jovens sempre arruinando tudo...

...E você fica com cara de quiabo porque não sabe se você é um dos jovens arruinando tudo ou já é velho para concordar com esta patacoada.

Caminhou após abrir a porta e nada de ruído nenhum na portaria. Olhou para dentro do vidro fumê onde deveria estar o porteiro , mas não viu ninguém, só o estalido do portão que denunciava que ele havia sido aberto. Entrou na gaiola e fechou o primeiro portão. O segundo demorou um pouco , mas abriu repentinamente e ele, aliviado, finalmente estava na rua.

Nada.

Não havia ninguém na rua. Nenhuma pessoa andando, nenhuma senhorazinha com carrinho de feira, nenhum ambulante vendendo bugigangas. Absolutamente ninguém. Ele pensou em ir à padaria, que ninguém é de ferro, comprar um pão, um leite B. Fechada. Fechada a padaria! Começou a ficar preocupado. Não havia ninguém lá, nem no estacionamento nem em lugar algum. Ninguém na rua, ele era único, dir-se-ia que era a única forma de vida em quilômetros. Ele se enganara quanto a isto e veria mais tarde o porquê. Sentiu-se estranho, porque não só não havia ninguém como nenhum carro andava nas ruas e o mais impressionante era o silêncio, o silêncio que ele ouvira certa vez que viajara à selva amazônica,  onde ouvira o rumor das águas– pelo menos lá havia barulhos!. Notou que os pássaros calaram, os cães não ladravam, nada se mexia! Havia sinais de alarme, sinais de que tudo estaria se acabando , mas assim, de repente... ninguém! Como assim?

Resolveu caminhar um pouco mais, portões, semiabertos, casas de janelas escancaradas. Lojas fechadas, faróis piscando amarelo. Justo ele resolvia caminhar e justo naquele domingo de sol, o mundo decidira acabar! É muito azar. Bom, nada difícil, e sendo eu e em sendo o mundo este que eu conheço nada impossível. Lembrou  que sua mulher lhe dissera sempre que era preguiçoso, pessimista e gordo. Ele era realista, porém jamais imaginara o que estava acontecendo. Passou pela sua cabeça uma maquinação terrível, quem será que havia planejado tudo aquilo?

Caminhou a passos largos e de coração cada vez mais apertado, os sinais de abandono enchendo-lhe os olhos. Janelas batiam ao vento, varais com roupas penduradas e recém-postas a secar, o sol batendo nos muros e sacadas dos apartamentos vazios e estranhos como ninhos vazios. Não, não podia ser verdade! Mas era: Ele olhou boquiaberto a avenida movimentadíssima outrora, carros esvaziados à força ou pelo menos ele assim imaginava pelas portas abertas, como se todos houvessem fugido do encontro inevitável, como se espavoridos houvessem abandonado todas as suas c oisas em meio às calçadas. Ele viu algo brilhando no chão e olhou para os lados, nunca se sabe, de repente uma motocicleta o atropelava... Bah! Que estava dizendo? Nem as motocicletas zumbiam mais como vespas entre os carros em fila indiana. Era um caos de abandono e o objeto que rebrilhava era um telefone celular que ele pegou na mão: Ainda quente, como se seu dono o houvesse jogado ali e corresse de... quê?

– Que domingo!

Dia de descanso, dia de caminhada. Dia de todos os santos dormirem, Dia de namoro, de amizade, de visita a pais esquecidos, dia de festa na casa da nona, dia de risoto na casa da mãezona, dia dos amantes acordarem satisfeitos depois da esbórnia e num dia destes,  glorioso em sua luminosidade, dia de cumprimentos, encontros, troca de receitas, reencontros e lembranças...

Mas nesse dia ele estava só como nunca estivera. Ou pensava que estava. O telefone tocou e ele atendeu:

– Olá! Alô????!

– Saia daí..Saia daí! Rápido!

– Que aconteceu???

– Corra sem parar! Agora! Vá!

Ele sentiu um arrepio na espinha, todos os hormônios do perigo acenderam luzes, e ele viu-se em disparada procurando abrigo em alguma das casas abandonadas à beira da avenida  em corrida desabalada, com a enorme sensação de algo lhe perseguindo nos calcanhares. Voltou-se e viu algo que o apavorou, uma fera, uma forma alongada, um animal de olhos enormes que lembrava uma figura sua conhecida, um Pacman correndo atrás dele; ele acelerou o passo, certo de que seria pego, nunca correra tanto como agora, entre os carros para despistar o que o perseguia, ganhando tempo, segundos que iriam se tornar em sua sobrevida, até que viu um portão aberto e se atirou por ele, correndo até dentro da sala da casa aberta e fechou com estrépito a porta da sala abandonada.

– Meu Deus, o que é isto? Com mil diabos!

Sentiu o telefone no bolso do moleton. Ele vibrava.

– Alô????!!

– Está vivo! Graças a Deus!

– Quem é você? O que aconteceu?

– Um amigo. Feche as janelas e as portas. Tranque tudo. Ligue as luzes e não durma! Senão ele vem e pega você.

– Ele, quem?

– O Pacman!

– Quê?

– Você não joga este jogo?

– O que isto tem a ver com esta situação?

Ele estava apavorado, até porque repentinamente ouviu um grito vindo do telefone e a voz que o interpelava subitamente emudeceu. Como se arrancado por força espectral. Silêncio. Nada. Seu amigo provavelmente morrera, seu salvador certamente deixara este mundo. Ele só ouvia ruídos estranhos do outro lado, como um arrastar de móveis, um ruído que lhe lembrava a serra de um açougue, uma lavadora de pratos ligada de porta aberta ou coisa assim. Obedeceu cegamente a voz que o aconselhara a fechar tudo e fechou as janelas abertas, trancou os portões de ferro da pequena casa desabitada e ligou a televisão: Sem imagens, sem comerciais, sem anúncios. Silêncio e estática cinzenta. Entrou nos quartos revirados e tentou achar um console de videogame onde poderia exorcizar quem sabe seus medos (sua mulher dizia sempre que nas horas mais absurdas ele se refugiava nos joguinhos). Não havia nada além das roupas jogadas, toalhas ainda recém-molhadas e papéis revirados. Um caos absurdo, como se todos houvessem sido arrancados de suas atividades da manhã e sumido por um buraco inexplicável.

– Que domingo!

Óbvio que estava faminto, sentia nas veias ainda o fluxo de adrenalina que o tinha salvo na rua, sabe-se lá do quê.   Foi à cozinha e comeu um frango desossado que havia dentro da geladeira. Bebeu muita água, a sede era enorme. Sentia-se irritadiço: algo fazia suas mãos tremerem. Toca o telefone, desta vez o da pequena casa. Ele vai atender e se surpreende com sua voz enrouquecida.

– Alô ????!

– Al???, Como vai?

– Quem? Você de novo? Pode me explicar o que acontece aqui?

– Aqui, aonde?

– Em todo lugar!

– Pergunta ampla demais não? Eu também ia lhe perguntar!

– Como vou saber? Apenas saí para passear, aí todos desaparecem e você me liga no celular!

– Eu não liguei para você no celular?

– Quem ligou então?

– Aonde?

– Hoje, na rua, quando peguei o celular!

– Não fui eu. Absolutamente!

– Então quem foi?

– Vou lá saber? Que papo de louco!

– Que quer de mim afinal?

– Só queria saber se você estava bem. Estamos em uma enrascada e acho que não saio desta vivo!

– Como sabe disso?

– Não consigo mais correr. Tenho asma, vou morrer!

– Calma!

Caiu a linha. Ele desorientado agora saboreava o último pedaço de frango quando olhou sua perna e havia uma mancha de sangue discreta. Notou um corte, talvez adquirido quando correra do estranho ser que o perseguira nas ruas. Ele se ferira assim, tinha certeza. Ligou a televisão, nada, só a estática de merda. Furioso, atingiu a televisão com o primeiro objeto que conseguiu e partiu em mil pedaços a tela de vidro verde. Pronto, agora não tinha nem estática nem chiado, nem videogame, só o silêncio das nuvens baixas... "Feche tudo. Não durma!". Ele sabia que se fechasse os olhos, seria a senha para o pequeno monstrinho invadir seu descanso provisório. Ele suava agora, às vezes cochilava um pouco e acordava sobressaltado com os ruídos das folhas caindo nas ruas vazias. De repente, pensou ver brotar dos cacos da televisão o herói de seus games, mas, é claro, agora já tinha sido vencido pelo cansaço do dia horroroso.

Aquele foi seu último domingo de sol.


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