O RELÓGIO DAS ÁGUAS
FLAVIO GIMENEZ
Espera e esperança - O Relógio das Águas - Flavio Gimenez - fls. 27 - Blocos Online

Um brilho, um olhar

Você está na rua, caminha placidamente, sem nenhuma pretensão. Observa as árvores, elas lhe transmitem paz, em seus movimentos lentos, os galhos rangendo em suaves balanços. O vento não chega a atrapalhar, nem a incomodar. Aí você vira os olhos e amplia seu horizonte. Vê as pessoas conversando, passando devagar, uma moça de suéter branco com um filho ao colo e seu marido de bicicleta, uma moça de olhos grandes com um sorvete imenso escorrendo pelas mãos, com cara satisfeita; um velho e seu andar em bloco, típico da doença de Parkinson, com um absurdo guarda-chuva aberto em plena sombra. Pássaros voando nos altos galhos, folhas caem descrevendo espirais no ar cristalino da manhã. Você está na rua, caminhando, feliz com sua breve existência, você não precisa de mais nada a não ser inalar este ar frio que veio da madrugada e invadiu a manhã cheia de poças molhadas que refletem miríades de pernas e nuvens esparsas que com o vento rareiam e afilam-se no horizonte. Nada mais que a existência lhe basta, como é bom sentir estalar os ossos da perna ao esticar um pouco mais para alcançar o meio-fio da calçada que teima em aumentar a distância de seu pé preguiçoso.

Nada mais é preciso que o saber encontrar-se com a mais leve das criaturas, justamente a que olha insistentemente em sua direção e não o vê, absorta que está com a visão de paraíso que domina a manhã mágica. Você se lembra de só uma dessas manhãs, em uma praia distante, quando você corria e os reflexos do sol tingiam de cores e brilhos sua face batida pelos ventos salgados do mar que bramia nos rochedos ao longe.

Você apenas caminha e nada mais. Mas insistem os olhos da pequena, coisa que nenhum mortal jamais consegue explicar, embora a física quântica sim: você influencia o objeto observado, parte de você passa a ser parte do outro, que se modifica benevolamente; portanto partes dela faziam parte de mim e partes de mim eram dela, em vital interação. Você apenas caminhava, porém agora já era pedaço de meu olhar insistente, você era respiração lenta, olhos bem abertos, ouvidos atentos, porque agora eu já fazia parte de seus poros, de suas idéias, podia sentir seus pensamentos que se povoavam da dúvida que esse olhar podia provocar, ao encontro do meu olhar com o seu.

Você apenas caminhava. Nada mais era necessário. Nada mais era preciso, nem nada era demais ou de menos.

Agora dois vultos seguem na manhã ensolarada e tranquila. Um todo sorrisos, outra toda espera. Em um passo uníssono, eles se olham e conversam, misturando suas vozes aos ruídos do parque ensolarado.


26 Retornar ao índice - O relógio das águas - Flávio Gimenez