UNIDADE X DUALIDADE

Em ocasião de um de meus contatos com os índios, aprendi que eles não têm registro para algumas idéias que são bem comuns pra nós. Admirou-me a reação de um deles a um comentário de um colega da minha equipe sobre o tempo chuvoso. Meu colega protestava contra a garoa que tornava nossa estada na reserva bem mais austera do que imaginávamos, ao que nosso anfitrião reagiu com uma expressão de quem observa alienígenas falando "alienigenês". Pensei comigo... "Ele fala português..." enquanto ele ria e maneava a cabeça. Foi minha deixa para pedir a ele que, por favor, me contasse no que nós parecíamos tão bizarros, e depois de alguma resistência, ele me confiou, em particular, o que me pareceu ser um segredo:
"Não posso entender como alguém pode pensar ser bom ou ruim a precipitação de um elemento da natureza. A chuva apenas chove, quando tem que chover. Logo o sol brilha quando tem que brilhar, o vento venta forte quando assim se faz, e suaviza quando deve. Como pode alguém colocar-se em posição de opinar sobre a natureza, se é "bom ou ruim" a chuva, o sol, o vento?" E ficou me olhando, e eu pra ele, os dois sem saber o que dizer. Seguimos andando em silêncio. Então ri, e maneei a cabeça como ele, e disse: "O mesmo tipo de gente que criou toda essa situação que vemos aqui, meu irmão..." e seguimos os dois maneando a cabeça.
Estes dias lembrei dele, quando percebi que tenho tido problemas pra conversar com as pessoas sobre certos assuntos. Dei-me conta que tem uns conceitos que hoje me parecem muito estranhos. Devido aos anos de trabalho com descondicionamento do corpo e do pensamento, terminei por adquirir dificuldades em entender certas idéias que são bem comuns pra todos, e já foram pra mim também. Fiquei de fato preocupada quando, recentemente alguém me perguntou assim: "O que você acha sobre vidas passadas"? Deu branco total. Eu senti uma sensação muito estranha, como se um abismo se abrisse diante de mim, era como se aquela pessoa não estivesse falando meu idioma. Depois de uns 30 segundos procurando entender o que tinha acontecido comigo, consegui responder:
"Olha... Não consigo entender o conceito de "vidas" no plural, pra mim isso não tem registro. Vida pra mim é a própria Unidade, é contínua, eterna... e você ainda acrescenta a palavra "passadas", daí me atrapalha mesmo! O tempo é algo linear, contínuo também... só existe o agora, eternamente... " Olhei pra ela confusa, e confessei... "Não sei o que você quer dizer com este termo "vidas passadas". Isso existe? Daí foi a vez dela de ficar confusa por alguns segundos. Ficamos nos olhando também sem saber o que dizer. Ainda bem que ela achou graça, riu e relaxamos.
Outro dia também vieram perguntar minha opinião sobre um assunto. Enquanto a pessoa expunha a questão, eu ia analisando levando em consideração o contexto, as limitações, necessidades e crenças da pessoa em questão, para saber se era adequado ou se convinha A ELA a situação em explanação, considerando o objetivo que se desejava com aquilo, e tudo o mais, quando, de repente, a pergunta terminou abruptamente em: "você acha que isto está certo?" Fiquei uns 10 segundos procurando referências para entender o que a pessoa estava querendo dizer com aquilo! Foi como se tivesse batido de cara num muro de concreto. Não sei mais o que quer dizer "certo" ou "errado". Acho que de tanto estes conceitos ficarem fora de uso, deletei.
Tem idéias que meu sistema não decodifica mais. Uma delas é essa de que devemos "aproveitar o momento". Não há vida fora do momento, nada existe que não seja ele, portanto, nada há para ser vivido nem aproveitado, a não ser o momento. O que pode vivenciar ou fazer da vida alguém que não está "aproveitando o momento"?  Alguém, por caridade, pode me dizer?

Gilda Miranda

Enviado pela autora

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