CHINESES E JAPONESES

A nordeste da China, ou antes da Manchúria chinesa, entre o mar do Japão e o mar Amarelo, há uma tristonha península de costas escarpadas, que a si própria se enfeitou, desde o ano de 1392, quando começou a reinar a dinastia que ainda hoje reina (ou que ainda reinava no mês, passado) com o nome risonho, luminoso e fresco de Reino da Serenidade Matutina. Os Japoneses, seus vizinhos, chamam a esta terra Ko Rai; nós, mais comodamente, Coreia. E um país tão silencioso, tão recluso, tão separado de toda a humanidade, mesmo dos seus parentes asiáticos, que no Japão e na China o designam pela alcunha de País Ermitão.
O que dele, na Europa, nós melhor conhecemos, por estampas, é a figura dos seus habitantes, homens esguios e graves, de longos bigodes pendentes, que usam o mais extraordinário chapéu de que reza a história das modas, o formidável chapéu coreense, muito alto, muito pontiagudo e de abas tão vastas que sob ele um patriarca pode abrigar toda a sua descendência, os seus móveis e os seus gados. Estes homens falam um chinês mascavado de tártaro, vivem de arroz e habitam casas rudimentares, feitas de bambu, adobe e papel.
Há aí, como na China, uma classe superior de letrados, mas enxertada sobre a antiga casta nobre de senhores feudais: e são estes senhores, educados sumariamente pelos livros chineses, que, depois de passados seus exames públicos e obtidos seus diplomas escolares, exercem os empregos, comandam as forças, governam as províncias, escrevem as gramáticas, administram a justiça e formam a corte. Todos os outros serviços são feitos por escravos. As classes letradas professam como moral, se não como religião, um confucionismo todo enferrujado de enguiços e magia. O povo nos campos adora o Sol e as estrelas. Toda esta gente bebe cozimento de arroz. O chá é um luxo da família real. A arte mais estimada é a música, que faz parte do ensino primário, como na Grécia de Péricles. As suas indústrias, se existem, são desconhecidas. Quando a Europa lhe manda missionários, a Coreia mata os missionários. Por capital têm a velha cidade de Seul, que todos os coreenses consideram como sendo, sobre a Terra, o centro supremo do fausto, dos prazeres, das belas maneiras, das existências ditosas.
É por causa deste Reino da Serenidade Matutina que o Império Florido do Meio está em guerra com o Império do Sol Nascente... Assim contada desta maneira (que é a maneira oficial), a luta da China e do Japão parece um enredo de mágica, ou o começo de um desses romances alegóricos, que tanto deleitaram o século XVIII, nos tempos do Palácio Rambouillet, da boa Mademoiselle de Seudery, d´Artamène ou le Grand Cyrus. E, com efeito, para o grande público, para todos aqueles que não são profissionalmente diplomatas, sociólogos ou estratégicos, esta guerra entre as duas nações fortes do Extremo Oriente oferece apenas o interesse divertido de uma pantomima militar, passada numa região de fantasia, onde a política é dirigida pelas fardas e os príncipes são picarescos. O Europeu tem decerto viajado desde que se criou a Agência Cook, folheia narrações de viagens (quando abundam em anedotas e diálogos), e já não exclama, à maneira das damas eruditas e dos espíritos picantes do sé culo XVIII: "Como é possível ser persa." Hoje começamos realmente a compreender (com certas reservas) que se possa ser chinês. Mas esses povos da extrema Ásia, por ora só os conhecemos pelos lados exteriores e excessivos do seu exotismo. Com certos traços estranhos de figura e trajo, observados em gravuras, com detalhes de costumes e cerimónias aprendidos nos jornais (artigo "Variedades") e sobretudo com o que vemos da sua arte, toda a caricatural ou quimérica - e que nós formamos a nossa impressão concisa e definitiva da sociedade chinesa e japonesa. Para o Europeu, o Chinês é ainda um ratão amarelo, de olhos oblíquos, de comprido rabicho, com unhas de três polegadas, muito antiquado, muito pueril, cheio de manias caturras, exalando um aroma de sândalo e de ópio, que come vertiginosamente montanhas de arroz com dois pauzinhos e passa a vida por entre lanternas de papel, fazendo vénias. E o Japonês é ainda para nós um magricela de crânio rapado, com dois enormes sabres enfiados na cintura, jovial e airado, correndo, abanando o leque, dissipando as horas fúteis pelos jardins de chá, recolhendo à casa feita de biombos e crisântemos para se cruzar numa esteira e rasgar o ventre! A ambos concedemos uma habilidade hereditária em fabricar porcelana e bordar a seda. Como por vezes as suas populaças trucidam os nossos missionários, a estes traços de carácter (tão exactamente deduzidos) juntamos o da ferocidade. Porque os Chineses não querem ter caminhos de ferro, nem fios de telégrafo, nem candeeiros de gás, que constituem para nós as expressões sumas da civilização, concluímos rasgadamente que são bárbaros. E enquanto aos Japoneses, que já copiaram as locomotivas e os telefones, só nos parece que essa civilização importada, macaqueada e mal usada, os torna irreparavelmente grotescos. Que por trás do rabicho e dos guarda-sóis de papel, e das caturrices, e de todo o exotismo, existam sólidas instituições sociais e domésticas, uma velha e copiosa literatura, uma intensa vida moral, fecundos métodos de trabalho, energias ignoradas, o europeu mediano não o sus peita.
Mesmo que conhecesse todas essas forças e virtudes, não se impressionaria, nem votaria mais respeito a essas pobres raças, que só o divertem. Quando uma civilização se abandona toda ao materialismo, e dele tira, como a nossa, todos os seus gozos e todas as suas glórias, tende sempre a julgar as civilizações alheias segundo a abundância ou a escassez do progresso material, industrial e sumptuário. Pequim não tem luz eléctrica nas lojas; logo, Pequim deve ser uma cidade inculta. Aquele loquaz personagem de Edmond About que desprezava profundamente os Árabes, porque "os desgraçados ainda nem sequer possuíam cafés-concertos", representa, em caricatura, o europeu mediano, julgando as civilizações asiáticas. Milhares, se não milhões, de europeus não acreditam ainda, verdadeiramente, que os Romanos e os Gregos fossem povos civilizados, pois que não conheciam a máquina a vapor, nem a máquina de costura, nem o piano, nem outras grandezas do nosso grande tempo.
Por isso damos a esta guerra do Japão e da China uma atenção errante e sorridente. E apenas uma grossa e rude bulha entre dois países bárbaros, um dos quais não é menos bárbaro que o outro, por andar mascarado com rabonas e armas da Europa. Pretendem alguns visionários, desses que gostam de profetizar sombriamente, que essas centenas de milhões de bárbaros, um dia, munidos do formidável material da nossa civilização, descerão sobre nós, assolarão a Europa... A ideia faz sorrir - e todo o europeu, olhando em torno de si a sua força, a sua riqueza, as inumeráveis invenções do saber, tanta máquina, e a Natureza domesticada e trabalhando à sua ordem, sorri regaladamente.
Assim o Galo-Romano outrora na sua linda vivenda de campo, repousando com um douto pergaminho no joelho sob os frescos pórticos de mármore, ou passeando no seu horto entre o acanto e as roseiras entrelaçadas aos bustos dos deuses e dos filósofos, sorria quando lhe contavam das hordas selvagens, francos ou godos, que tinham atacado alguma velha legião romana, longe, na terra dos pântanos e das brumas. Que podiam importar essas gentes bestiais? Não era a Gália, toda a Itália, uma maravilha de força, de riqueza, com tanta máquina de guerra, tão fortes invenções do saber?... Depois, uma manhã, o Godo ou o Franco aparecia, montado num potro bravo, com um simples chuço, e do Galo-Romano, dos pórticos de mármore, do quieto jardim cheio de rosas, dos filósofos e de todas as invenções do saber, só restava um pouco de sangue e de poeira.
O motivo por que se estão batendo Chineses e Japoneses não é o que particularmente nos interessa. Ambos querem dominar o Reino da Serenidade Matutina. Os Chineses, porque esse domínio é para eles uma tradição secular. Os Japoneses, porque receiam (segundo dizem os seus diplomatas) que a Rússia, através da fraqueza ou da condescendência interesseira da China, se estenda pela Coreia, ocupe algum dos seus portos fronteiros ao Japão (como Fusan), domine portanto no mar do Japão, que os Japoneses consideram seu, e venha, se não ameaçar a independência japonesa, a prejudicar o seu desenvolvimento comercial... Mas tudo isso é uma questão de remota política asiática. O que ardentemente nos deve ocupar, a nós Europeus, e mesmo a vós Americanos, são as consequências da guerra - sobretudo as consequências de uma derrota da China, de uma boa derrota, bem estridente e humilhante, que penetre até ao mandarinato, até ao inacessível orgulho da dinastia manchu. Se fosse o Japão o esmagado, não viriam daí inquietações para o nosso mundo ocidental. Era apenas um povo ligeiro e atrevido que levava uma sova. A China vitoriosa seria a China readormecida. A China vencida - é a Europa ameaçada.
A China é um povo de quatrocentos milhões de homens (quase um terço da humanidade!), todos extremamente inteligíveis, de uma actividade formigueira, de uma persistência de propósitos e tenacidade só comparável à dos buldogues, de uma sobriedade quase ascética e com inacreditável capacidade de aturar e sofrer. Os europeus que habitam e visitam a China acrescentam que eles são, além disso, muito falsos, muito mentirosos, muito covardes, muito larápios e muito sujos. Mas estes europeus, verdadeiramente, da China só conhecem a orla marítima, os portos abertos ao comércio europeu, as "concessões", Hong-Kong e Xangai. E nestes portos só conhecem materialmente aquela populaça chinesa, iletrada e grosseira, que se emprega nos misteres inferiores de barqueiro, carregador, criado, moço de fretes, vendedor ambu lante, etc. Ora, avaliar por esta baixa matula toda a sociedade chinesa é como julgar a França pelos maltrapilhos que fervilham nos cais de Marselha, ou criticar o Brasil, e a sua educação, a e a sua cultura, e a sua força social, pela gente baixa que carrega e descarrega fardos dos trapiches para os armazéns. Viajantes que se tenham alongado para o Centro da China, e observado alguns modos e costumes das classes cultas, e espreitado aqui e além, através das fendas de portas, um pouco da vida íntima, da família, das ideias, das crenças, podem ser contados pelas pontas dos dedos. Os próprios residentes estrangeiros de Pequim, formando o pessoal das legações, não penetram na sociedade chinesa, vivem enclausurados dentro dos muros das residências, como os antigos judeus nos guetos, e só se familiarizam com os aspectos externos, ruas, lojas, frontarias de templos e perpassar das multidões. Só um desses residentes tinha aprofundado a China. Era um secretário da legação inglesa, que falava com perfeição o chinês, não só o idioma popular, mas a linguagem mandarina e clássica, e que deixara crescer um enorme rabicho. Durante trinta anos, todas as noites, este homem absolutamente achinesado vestia a sua cabaia de seda, soltava o rabicho, tomava um leque e ia passar algumas horas amáveis com as famílias nobres de Pequim. Esse realmente conheceu a China; mas, tornado chinês e portanto discreto, não escreveu as suas impressões - e morreu.
Recentemente alguns empregados europeus do Governo chinês, como os engenheiros e professores do arsenal de Fucheu, têm entrado suficientemente no âmago do mundo chinês. E todos esses voltam contando uma China muito diferente da dos turistas que desembarcam uma manhã no cais de Xangai e à noite estão avaliando a civilização sessenta vezes secular de um povo de quatrocentos milhões de homens pelo que observaram de reles, de sujo, de grotesco e de velhaco no coolie que lhes carregou a maleta para o hotel. Os que assim se internam pela China vêm na realidade mara-vilhados - e tendo ido para ensinar os operámos chineses a construir metralhadoras, confessam que aprenderam, na convivência da burguesia culta e letrada, lições de conduta, de ordem, de respeito filial, de profunda união doméstica, de inteligente economia, de trabalho metódico, de subordinação, de pureza, de zelo moral e de toda a sorte de virtudes íntimas, que garantem melhor a grandeza, estabilidade e ventura de uma nação do que a mais subtil arte em fabricar obuses e manobrar torpedeiros.
Só se queixam da falta de higiene municipal e da porcaria das ruas - que, sobretudo nas províncias (mesmo em Cantão e Pequim), são quase tão mal varridas, e tão abundantes em lixo, como as de Paris aqui há cinquenta ou sessenta anos, quando já o papá Hugo lhe chamava a "cidade radiante", alma do mundo, e toda a Europa lhe imitava, mais que hoje, os modos, as modas, as graças e os vícios. Mas que os Chineses tenham só defeitos ou só qualidades, o certo e que arranjaram a seu modo uma civilização que possui sem dúvida uma força prodigiosa, pois que tem sobrevivido a todas as formas de civilizações criadas pelo génio da raça ariana: e que possui decerto também uma grande doçura, porque o tema invariável e secular da literatura chinesa, desde as máximas dos filósofos até às canções dos lírios, é celebrar a inefável e incomparável felicidade de ser chinês, de viver na China!
Com efeito, tudo tem havido na China, neste últimos dez mil anos mais chegados - excepto um pessimista. Dentro dessa civilização forte e doce vivia a China encerrada, como todos perfeitamente sabem, porque a Muralha da China tem sido uma das metáforas mais activas da retórica ocidental. Todos os que se prezam em arquivar os feitos civilizadores do século sabem também como a Inglaterra, ajudada pela França, abriu brechas nessa muralha para meter para dentro o ópio - o ópio que o Governo da China não queria admitir, pela razão verdadeiramente intolerante de que o ópio enerva, envenena, destrói, desmoraliza as raças! A esse feito se chamou a guerra do ópio - e por ela triunfaram os sagrados direitos do negócio.
Depois de entrar vitoriosamente em Pequim, e de ter, à velha maneira dos Átilas e dos Tamerlãos, "flagelos de Deus", roubado e queimado o Palácio de Verão, que era o inestimável museu imperial da arte chinesa, e com ele bibliotecas, arquivos históricos, toda a riqueza literária daquela letrada nação, a Europa força a China a abrir na sua carta cinco portos ao comércio europeu, aos algodões, às ferragens, ninharias ocidentais, e sobretudo ao ópio, ao imenso ópio, a seis a sete milhões de quilos de ópio por ano!
Ora sucedeu que por esses portos, ou portas rasgadas na vetusta Muralha da China, onde entravam os Europeus, saíram os Chineses a ver enfim o mundo, e esta família humana de que há tantos mil anos andavam separados... De então, com efeito, datam os dois factos consideráveis da nova China - a emigração e as missões mandadas à Europa para estudar as nossas ciências, as nossas indústrias, as nossas frotas e os nossos exércitos.
Estas missões saíram da China com curiosidade - mas também com imensa repugnância. O Chinês tem pelo Europeu um horror, de instinto e de razão, fisiológico e raciocinado, que está muito bem caracterizado numa página dos Anais Populares do Império em que se conta a primeira aparição dos holandeses em Macau, e nas vizinhanças de Cantão. "Estes homens (diz essa amarga narração) pertencem a uma raça selvática que habita regiões escuras e húmidas, e que nunca teve a vantagem de se relacionar e aprender com a China. São criaturas avermelhadas, de olhos azulados e estúpidos, e imensos pés de mais de um côvado. Parecem lamentavelmente ignorantes. E como aspecto exterior nada se pode imaginar de mais exótico e repelente!" Aí está a impressão que os bons flamengos (que nos parecem tão sólidos, sãos e limpos tipos de homens) fizeram aos Chineses. E os portugueses que nos fins do século XV apareceram nas costas da China, e os ingleses e franceses que vieram depois no rasto das nossas caravelas, não foram mais simpáticos aos filhos do céu. Todos estes forasteiros lhes pareceram grotescos e hirsutos de figura, grosseiros e brutais de maneiras - e, como costumes e moral, perfeitamente desprezíveis. Para que tinham eles atravessado o mar nos seus grossos navios? Para piratear ou, quando muito, para traficar. Ora a classe culta da China, a grande burguesia letrada, considera o negócio como ocupação inferior e baixa - e a avidez do ganho, a fome do ouro, como a evidência de uma natureza vil.
Naqueles homens turbulentos, de face dura e arrogante, que berravam, constantemente sacavam de grossas catanas, e para quem a arte de viver se resumia na arte de mercadejar, os Chineses não podiam encontrar as únicas qualidades que para eles constituem o homem bom - a quietação, a polidez, a tolerância, o sentimento de equidade, o amor das letras e da palavra escrita, o culto da tradição e da autoridade. E desde então a ideia do Europeu ficou associada no Celeste Império à ideia do homem maléfico. O nome com que geralmente nos honram é o de fan-kuci, que significa o diabo estrangeiro, o ser que traz de fora e espalha o mal. De resto todos os outros europeus que, desde a abertura dos portos, se estabelecem na China ou a visitam, não melhoram esta impressão de desconfiança e desprezo. São, na quase totalidade, homens de negócio, secos, sacudidos, ocupados só de enriquecer, passando uma vida toda material, sem gosto pelas coisas do espírito e do saber - e portanto, segundo a ideia do chinês letrado, abjectos. São também em grande parte marinheiros que desembarcam, e pela sua indisciplina, as suas rixas, as suas bebedeiras, escandalizam e desolam o Chinês, o mantêm na opinião de que na raça europeia, além de avareza, só há brutalidade. Os missionámos, que deveriam ser os representantes autorizados das nossas virtudes espirituais, não os impressionam senão desagradavelmente. Na sua religião eles não mostram, nem unidade, nem dignidade, tratando-se mutuamente de "heréticos", de um lado a Igreja Católica, de outro a Igreja Protestante, esta contraminando aquela, que intriga contra a outra, e ainda dentro de cada igreja, divididos em seitas que se guerreiam, calvinistas contra anglicanos, jesuítas contra dominicanos. Nos seus costumes não mostram humildade nem unção, dando-se logo todos como altos funcionámos europeus, usurpando as insígnias exteriores dos dignitários chineses (como a liteira verde de quatro carregadores), desprezando as leis do império, escarnecendo os ritos e os sacerdotes budistas, e tendo uma conduta toda de intolerância e arrogância. Além disso, a sua doutrina (sobretudo na parte moral, que é a única que importa ao espírito chinês) não parece superior nem nova a quem foi educado nos livros de Confúcio ou nos conceitos budistas. Na realidade o letrado chinês não encontra no cristianismo senão contradição, inverosimilhança e névoa; e no pouco que ele tem de bom, os seus preceitos morais, só vê, com desdém, pálidas e imperfeitas imitações do confucionismo e do budismo.
De tudo isto resulta, para o Chinês, um tremendo desdém pelo Europeu e a convicção de que, intelectualmente, moralmente e socialmente, lhe é de todo o ponto superior, e deveria ser seu mestre. Todavia há uma qualidade que ele reconhece no Europeu - é a de mecânico. É esta, de resto, a única superioridade que nos concedem os Orientais: e qualquer brâmane hindu ou qualquer ulemá muçulmano concordará que, lamentavelmente medíocres, como somos, nos nossos sistemas religiosos e éticos, na nossa metafísica, na nossa literatura, nas nossas doutrinas sociais, temos todavia uma habilidade de mãos verdadeiramente infernal
para fabricar máquinas a vapor, aparelhos telegráficos, toda a sorte de ferramentas astutas. Este talento nosso, todo o Oriente decerto o considera inferior, manual, próprio de mesteirais e de escravos. Mas
concorda na sua grande utilidade (não há nada, mesmo para um mandarim da academia de Han-Li, como uma locomotiva quando ele queira andar depressa) e reflecte que, se adquirir esse talento, se tornará um homem verdadeiramente completo, pois que à superioridade intelectual juntará a superioridade industrial, e será duplamente forte pela moral e pela mecânica.

Foi neste espírito que os Chineses mandaram as suas primeiras missões escolares à Europa e começaram a sua aprendizagem científica. Esta iniciação, porém, teria sido muito fragmentária, toda casual e sempre contrariada pelo velho e intratável conservantismo chinês, se a não estimulasse por outro lado o orgulho político dos mandarins e as suas violentas rivalidades com o Japão. A China, desde séculos, detesta o Japão por motivos um pouco semelhantes aos que mantêm a França e a Inglaterra num perpétuo e surdo estado de antagonismo e desestima. São as duas grandes nações do Extremo Oriente, onde ambas aspiram o predomínio; têm um desenvolvimento idêntico, em literatura, em arte, mesmo em certas indústrias nacionais que ambas exportam e que se chocam nos mercados, o que ajunta à emulação intelectual a emulação comercial: os seus temperamentos, além disso, são dissemelhantes como o do Francês e do Inglês, um grave e prático, outro ligeiro e fantasista, o que cria, no constante encontro dos homens das duas raças, uma multiplicidade de pequeninas antipatias individuais, que se prendem e se somam, num vasto ódio internacional. Guerras sucessivas têm intensificado essa rivalidade - e realmente o Chinês e o Japonês, que ambos mutuamente se tratam de bárbaros e de escória da Terra, só tinham tido até hoje um impedimento para se entredilacerarem, que era o mar que os separa, a insuficiência das suas marinhas e o medo comum da Europa.
Ora, o Japão, como todos sabem, realizou uma transformação extraordinária e decerto única na história. De uma manhã para a tarde, sem descanso, com um ardor frenético, este povo ligeiro e gárrulo sacudiu as suas tradições, as suas instituições, as suas leis, os seus costumes, os seus trajes, as suas maneiras - e envergou de uma só vez, e toda completa, como uma farpela, a civilização europeia, comprada por preços ruinosos num "armazém de civilizações feitas". Nada representa ou deve representar melhor um estado do que o seu chefe - e ainda há pouco eu considerava duas estampas que pintam com um relevo desolador (para o artista) a transformação do velho em novo Japão. Numa é o micado, ainda imperador omnipotente e hierático, meio homem, meio deus, alçado no seu trono, que mais parece altar, todo envolto num manto de seda cor de palha, com uma mitra de laca branca, onde faíscam pedrarias, imóvel e de olhos baixos à maneira de um ídolo, enquanto o fumo do incenso se eleva
das caçoletas, e velhos daimios feudais e samurais magníficos, vestidos de brocados, de bronzes dourados, os dois sabres na cintura, as duas antenas de ouro tremendo no elmo, se prostram ante a majestade do Filho do Sol, tocam com a fronte as finas esteiras claras, juncadas de flores de nassari. Na outra estampa, de cores vivas, é ainda o mesmo micado, anos depois, mais pequeno e como diminuído, com uma farda vermelha de general inglês que lhe faz rugas no sovaco, um capacete branco de general prussiano que lhe tomba para os olhos, umas calças azuis de general francês que lhe fogem dos tornozelos, sentado de esguelha numa poltrona, dentro de uma estação de caminho de ferro, enquanto em redor se agitam funcionámos constitucionais, de chapéus de bico, de chapéus altos, de chapéus-coco, apelintrados e contrafeitos, e ao longe uma locomotiva fumega e vai partir por sob um arco de lona que ostenta este lema estupendo: "Viva a constituição!" Este é o Japão novo. E lúgubre. Mas é forte - porque, com os nossos horrendos chapéus de bico e as nossas pantalonas agaloadas, adoptou também os nossos couraçados, as espingardas Lebel, as metralhadoras, toda a nossa organização e ciência militar. E, como não lhe falta a inteligência destra para aplicar os nossos princípios e usar o nosso material, e como os seus oficiais são educados nas escolas, nos arsenais, nos campos de manobras da Europa, em breve o Japão pitoresco se tornou o Japão formidável, e, apesar de as fardas mal feitas lhe darem um ar xexé de Entrudo, ficou sendo a grande potência do Extremo Oriente.
A China observou com indizível nojo esta revolução social do Japão - mas também com uma vaga inquietação. Os homens que aboliam o mais santo dos cultos, o culto do passado, que se enfardelavam com a rabona estrangeira, que abandonavam as suas festas religiosas para aplaudir em casinos alumiados a gás as cançonetas torpes de Marselha, eram sem dúvida vis: mas os seus portos estavam cheios de couraçados, os seus arsenais de armamentos, um saber novo penetrara na sua educação, e podiam portanto, apesar de ignóbeis, ser perigosos. A manhosa e forte civilização dos "diabos europeus" convertera-os numa grande potência asiática, comunicando-lhes as suas manhas e a sua força - convinha portanto adquirir também essa força e essas manhas para que o Império do Meio não fosse sobrepujado pelo pequeno Império do Sol Nascente, uma vez que está desgraçadamente provado que a espingarda Lebel mata melhor que a elegante e venerável flecha dos avos.
Foi portanto o Japão que forçou sobretudo a China a entrar, bem a seu pesar, na imitação europeia - e este passo humilhante, tão contrário a todos os seus sentimentos sociais, políticos e religiosos, a que a China era impedida pela indecente europeização do vizinho Japão, mais irritou os mandarins contra o Governo, agora constitucional, do micado. O velho Japão já era antipático à China - o novo Japão, apetrechado à europeia, com gás e com telefones, tornou-se-lhe intoleravelmente odioso. A própria questão da Coreia, tão antiga entre os dois povos, se complicou, se azedou com esta questão recente e singular das inovações ocidentais. Em Seul, na corte do pobre rei da Coreia, as influências chinesa e japonesa, em hostilidade latente desde longos anos, combateram-se agora, nestes derradeiros tempos, acerca dessas formas de civilização que o Japão, com o zelo dos novos convertidos, tentava introduzir na Coreia, e que a China se esforçava em repelir, com rancor. Assim o Japão levava o fraco e aturdido Governo coreense a criar uma escola militar de tipo europeu - e imediatamente a China conseguia a sua supressão. Depois, foi um caminho de ferro, a que a influência japonesa assentara os primeiros rails - e que a influência chinesa logo tortuosamente embargou e por fim destruiu.
E, apesar de tudo, a China continuava a importar as nossas armas, a reproduzir os nossos modelos - mas lentamente, a custo, sem grande confiança na sua eficácia, e certa ainda que, numa guerra, o Japão, com todo o seu material e ciência trazidos da Europa, seria esmagado pelo número incontável das velhas tropas chinas, manchus e tártaras. Era uma ilusão. Apenas declarada essa guerra, em poucas semanas o Japão ocupava a Coreia, escangalhava o velho rei e o velho Governo, repelia o exército chinês, destroçava a armada chinesa, invadia o solo chinês e começava uma marcha sobre Pequim, para impor ao Filho do Céu, dentro da sua cidade santa, uma paz cheia de vergonha e ruína. Por ora o Japonês ainda marcha, ainda está longe de Pequim. Mas quando lá entrar, como tudo o pressagia, a China terá sofrido a maior afronta de toda a sua história de seis mil anos. E que, em consequência dessa humilhação, a actual dinastia manchu desabe ou permaneça, o mandarinato, que é eterno e sobrevive a todas as dinastias, há-de raciocinar (porque é essa a sua profissão) que a ultrajante derrota provém só de a China não possuir as armas e os métodos europeus, tão intrinsecamente fortes que, mesmo usados por homens tão vis como os Japoneses, "escória da Terra", triunfam irresistivelmente de um tão augusto poder como o do Império Florido.
E deste raciocínio justo resultará que, pelo menos militarmente, a China se vai tornar europeia, no que a Europa tiver de mais engenhoso, de mais científico, de mais moderno. Ela fará exactamente o que nestes derradeiros quinze anos fez o Japão, nas proporções superiores de quem tem quatrocentos milhões de homens e inumeráveis milhões de dólares, e com aquela inteligência, e tenacidade, e senso prático, e método que caracterizam a raça. Em vinte anos, em menos, a China pode ser a mais poderosa nação militar da Terra.
E não precisa para isso, como nós precisamos, de inventar, de criar laboriosamente: basta que compre e que aprenda, o que é fácil ao seu agudo engenho, ao seu imenso dinheiro. O génio ariano cá está no Ocidente, na sua sublime e natural tarefa de calcular, de descobrir - o mongol de rabicho só tem que olhar, escolher, adoptar.

Ora quando a China se tornar uma nação militar, extremamente poderosa, a Europa ficará numa situação singularmente perigosa. Não que devamos recear, como tanto receiam e já profetizam, uma nova invasão de bárbaros da Ásia. Mesmo quando na China surgisse um Átila, capaz de reunir pela energia do seu génio todos o povos do Oriente, para os lançar sobre o Ocidente - a nossa civilização nunca poderia ser submergida, nem mesmo parcialmente desmantelada. A sua coesão é enorme, há uma resistência invencivelmente forte na sua unidade social e moral - e a Rússia forma um baluarte que nenhum poder, mesmo organizado e apetrechado à europeia, poderá jamais transpor. Além disso, a China está prodigiosamente velha - e essas aventuras
reclamam um sangue novo e rico, como era o dos Hunos ou dos Godos. De resto, o Chinês é, como todos os povos rurais, um povo essencialmente pacífico. A sua educação, desde longos séculos, tem sido antiguerreira - e toda a sua literatura, como toda a sua ética, ensina o desprezo pelo homem de anuas. A China é uma raça de lavradores, governada por uma classe de literatos; e com estes elementos não se criam hordas invasoras. Creio, pois, que o Galo-Romano pode passear sossegadamente, sob os pórticos pintados da sua vila, entre as flores e os bustos dos sábios. O homem amarelo não descerá do seu peludo corcel tártaro, soltando o velho grito de Tamerlão: "Haï-up! Haï-up!" Mas virá, todavia, o homem amarelo! Virá muito humildemente, muito pacificamente, em grandes paquetes, com a sua trouxa às costas. Virá, não para assolar, mas para trabalhar. E é essa a invasão perigosa para o nosso velho mundo, a invasão surda e formigueira do trabalhador chinês.
A Califórnia mostra, nas pequenas proporções de uma província, o que poderá ser, no nosso populoso continente, uma ilimitada vinda de chineses. Foi em 1852 que chegaram a São Francisco da Califórnia os primeiros cem imigrantes, ainda tímidos e incertos, procurando trabalho nas minas. Dez anos depois eram cem mil. Seriam hoje um milhão, muitos milhões deles, se o estado da Califórnia não os tivesse repelido como uma praga, como se repelem na Argélia os gafanhotos, ou na Austrália os coelhos. Não é, como se pensa, a fome e a miséria que os expulsam da China. Ao contrário! Todos estes imigrantes que vêm das ricas províncias do Sul da China pertencem a uma classe rural remediada, possuem uma instrução média, trazem o seu pecúlio. Não há neles o espírito errático de aventura - mas o propósito muito raciocinado de fazer fortuna comedida e sólida, e de voltar para a China, onde deixaram a casa, as mulheres, uma família, um centro estável com quem comunicam constantemente, fielmente. Toda esta imigração estava admiravelmente organizada, por meio de associações (tudo na China se faz por associação) cujos chefes, já instalados na Califórnia, promoviam a passagem dos imigrantes, os recebiam, os instalavam, lhes procuravam emprego, julgavam as suas dissensões, velavam sobre eles paternalmente.
Assim se forma logo sempre na cidade estrangeira uma cidade chinesa, fechada e compacta, com os seus altares, as suas lojas, os seus hospícios, as suas escolas, o seu mandarim, todos os órgãos necessários a uma pequenina China. Daí irradiam os trabalhadores. E nunca lhes falta trabalho. Em primeiro lugar, porque se contentam com a terça parte do salário do trabalhador branco. O Chinês não tem necessidades: uma única cabaia de chita ou lã grossa lhe basta para uma existência: um pouco de arroz e dois goles de chá o alimentam. Onde o branco, comilão e vicioso, precisa de' ganhar dois mil réis por dia, o Chinês está feliz com três tostões, e acumula. Em segundo lugar, tem admiráveis qualidades de trabalhador - pontualidade, actividade, docilidade, adaptação perfeita a todas as formas de serviços. São superiormente inteligentes e inacreditavelmente sofredores. As colossais obras de aterramento feitas na Califórnia, na Serra Nevada, só podiam ser executadas pela dureza e infatigabilidade do nervo chinês. Sem eles, o grande caminho de ferro do Pacífico nunca teria sido construído tão rapidamente, tão habilmente. Na Havana, nas grandes plantações de tabaco, de açúcar, de algodão, em serviço onde todas as raças sucumbem, mesmo a negra, o Chinês prospera, fica mais luzidio e gordo.' Sóis tórridos, chuvas trespassantes, terrenos paludosos, micróbios e toxinas não têm acção sobre aquele ser, de aparência mole e como feito de borracha. De resto, como se sabe, a; sensibilidade nervosa do Chinês é mínima, e por isso eles são quase indiferentes às penalidades usuais do código chinês, a bastonada e a canga. Toda a sua sensibilidade é moral e assim, na Havana, o castigo terrível e verdadeiramente doloroso que se impõe ao Chinês é cortar-lhe o rabicho. O rabicho é o símbolo exterior da sua dignidade, como outrora, para os cavaleiros godos ou francos, os densos cabelos anelados.
O Chinês, logo que reúna pelo trabalho do campo, da mina, ou da fábrica, um saco de economias, vem estabelecer-se na cidade, como jardineiro, lavadeiro, alfaiate, sapateiro, cozinheiro, ourives, etc. E nestes misteres é incomparável pela habilidade, a rapidez, a originalidade, a excelência da mão-de-obra. Quando as economias crescem, abandona a pequena indústria, entra no comércio - onde é prodigioso, pela lealdade, a finura, o faro, a prontidão em compreender todos os métodos e manhas da praça. Depois, apenas faz fortuna, abala para a China, levando o dinheiro do branco, e um desprezo mais intenso ainda do que trouxera pela civilização europeia. Um imigrante com estas capacidades é terrível, sobretudo em países industriais, porque altera profundamente a balança dos salários. O capital produtor tem o sonho ansioso (e legítimo) de diminuir, pela baixa dos salários, as despesas de produção. Quando lhe aparece, portanto, um operário hábil, incansável, pontual, dócil, que não faz greves, nem política, é apenas um complemento inteligente das máquinas, e oferece o seu trabalho por metade ou um terço do salário normal, imediatamente o aceita, com alacridade, sem curar de que ele tenha raça amarela, branca ou verde. Foi o que aconteceu na Califórnia. O celestial começou lentamente a expulsar o ianque de toda a actividade assalariada. Nas minas, nas estradas, nas fábricas, nas indústrias, por toda a parte onde se necessitavam braços os amarelos eram preferidos aos brancos. E como esta imigração se desenrolava sempre cada dia mais densa, e o seu crescente conhecimento do país lhe aumentava os meios de expansibilidade, a concorrência chinesa em breve pesou vitoriosamente no mercado, e a taxa do salário baixou de um modo esfaimante para o trabalhador de raça branca. A consequência foi que a raça branca (que tem inventado as teorias mais nobres sobre a liberdade do trabalho) passou a impedir violentamente os chineses de trabalharem. Nas mesmas fábricas, por toda a parte, o Chinês era escorraçado, espancado, esfaqueado e a polícia da Califórnia desviava os olhos benévolos. Além disso os políticos, sob a influência da população operária que dispõe de voto, começavam a criar leis opressivas contra o Chinês, para lhe tornar a vida intolerável, o desgostar para sempre as doçuras da Califórnia. O Chinês, porém, com a tenacidade da sua raça, persistia. Cada paquete do Pacífico desembarcava em São Francisco mil e quinhentos, dois mil chins. Era como uma velha praga da Bíblia. A populaça operária, submergia, ameaçava o Estado com uma revolução. Os políticos então, repuxando até ela estalar a doutrina de Monroe, conseguiram uma lei que proibia ao habitante da China penetrar no solo da Califórnia! Mas como se pôde estabelecer uma tal lei, tão escandalosamente violadora de todos os direitos divinos e humanos? Porque a China era fraca, e não tinha esquadras nem exércitos para fazer respeitar nos seus nacionais o direito que a todo o habitante da Terra assiste de percorrer a Terra, e de escolher nela um canto onde se instale, pacificamente trabalhe e se nutra.
Como me dizia a mim mesmo um mandarim (o único que me foi dado conhecer, homem magnífico, de maneiras antigas e incomparavelmente aristocráticas, e vestido com uma cabaia de seda verde-mar e fio de ouro que me perturbou), como ele pois me dizia: "O Chinês não poderá viajar enquanto não possuir, à maneira da Europa, couraçados para o comboiar." E por isto significava aquele venerável mandarim que a China, quando fosse preste, deveria fazer à Europa o que a Europa fez à China - obrigá-la a receber os seus trabalhadores sob pena de a metralhar. E aqui está o perigo económico que nos virá do Império Florido, quando ele, derrotado pelas armas europeias do Japão, sacudir o antigo torpor sob que se tem enferrujado, atirar para o lixo a flecha tártara, e se armar e construir frotas, e conhecer profundamente o modo de as manobrar e se converter numa imensa potência militar e marítima - o homem amarelo fará logo a sua trouxa e embarcará, confiado e seguro, para vir explorar a Europa. Será um movimento lento (tão lento como foi o das hordas bárbaras para dentro do Império Romano), mas que fatalmente se dará como a natural consequência de quatrocentos milhões de homens reentrarem de novo na família humana. O pequeno formigueiro chinês que alastrava a Califórnia até que O ianque o esmagou sob o seu grosso sapato ferrado de pregos - recomeçará em proporções imensas para toda a América, para toda a Europa. E então não se poderá contra ele decretar a perseguição, muito menos a expulsão - porque detrás do imigrante chinês avançará o couraçado chinês: comer um chinês, segundo a expressão americana, será então uma aventura tão indigesta e tão cheia de perigo como é hoje na China comer um inglês.
A desorganização económica que se deu na Califórnia virá repetir-se na Europa com descomunal magnitude. Nas fábricas, nas minas, no serviço dos caminhos de ferro, não se verão senão homens de rabicho, silenciosos e destros, fazendo por metade do salário o dobro do serviço - e o operário europeu, eliminado, ou tem de morrer de fome, ou fazer revoluções, ou de forçar os estados a guerras com quatrocentos milhões de chineses. É esta a invasão a recear - não a invasão tumultuária à moda vandálica.
E será tanto mais temerosa que terá por si a força do direito, sem que seja fácil exercer contra ela o direito da força. Ela terá além disso como cúmplice e instigador o interesse do capitalismo: porque, à maneira que as nossas classes operárias, mais educadas, se tornarem mais indisciplinadas (ou antes, mais legitimamente exigentes) e o capital europeu travar uma Juta mais áspera com o trabalho europeu, a sua tendência irresistível será utilizar a enorme massa dócil e facilmente contente que cada ano lhe remeterá a inesgotável China. Em cada centro industrial da Europa haverá assim um permanente e atroz conflito de raças - como já hoje se dão, e por motivos idênticos, conflitos de nacionalidades, em que o Francês espanca o Italiano, porque o homem trigueiro de além dos Alpes come menos carne e pede menos salário. E se a invasão operária chinesa não triunfar (porque a força e a influência do proletariado são já imensas e ainda crescem), essa invasão será, num grande período do século XX, uma nova e intensa complicação, sobrevindo a tantas, já tão temerosas, que esperam os nossos pobres netos.
Mas basta de Chineses! Vós, amigos, aí no Brasil, parece que os desejais, para vos plantar e vos colher o café. Sereis inundados, submergidos. Virão cem, virão logo cem mil. Daqui a dez anos em São Paulo e no Rio tereis vastos bairros chineses, com tabuletas sarapintadas de vermelho e negro, fios de lanternas de papel, covis empestados de ópio, toda a sorte de associações secretas, uma força imensa crescendo na sombra, e cabaias e rabichos, sem cessar fervilhando. Mas tereis cozinheiros chineses, engomadores chineses - e sabeis enfim o que é uma sopa superlativamente sublime e um peitilho lustroso e digno dos deuses. Todas as outras colónias, portuguesa, italiana, alemã, serão insensível e subtilmente empurradas para as suas pátrias de origem - e o Brasil todo, em vinte anos, será uma China. Os nativistas estourarão de dor e nojo. E como, por caridade intelectual, é necessário que a todo o espírito se dê alimento - metade da Gazeta de Notícias será impressa em chinês. Bom é, pois, que comeceis a reler o vosso Confúcio, camaradas - e que vos inicieis nos divinos livros fundamentais, o Chu-King, que é o Livro das Memórias, o Chi-King, que é o Livro das Imaginações, o Ji-King, que é o Livro das Mudanças, e o Li-King, que é o Livro dos Ritos.
De resto, todo esse chinesismo não será para o Brasil senão um ligeiro acréscimo de confusão. E depois, quem sabe? Talvez a influência ambiente do confucionismo infiltre enfim e derrame no país os princípios salutares da doutrina perfeita - o amor da disciplina, do respeito, da tolerância, da ordem e da paz laboriosa.

Eça de Queirós

Do livro: "Chineses e Japoneses" (artigos), prefácio de Orlando Grossegesse, Cotovia / Fundação Oriente (Série Oriental), 1997, 8ª ed., Lisboa

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