O TEMA DA POSSESSÃO

Constrangidos e equivalentes no limiar da decadência estão, de caras lambidas, os que compram e os que vendem consciências e almas, os primeiros já imersos na danação, e os outros, a caminho. A história mal-contada vem de longe, desde que o mundo é mundo e que Eva cooptou Adão, Caim matou Abel, David seduziu Betzabá, Labão enganou Jacob – e Judas Iscariotes amealhou as trinta moedas. Depois vieram os ciclos centenários e milenários, as figuras míticas das eras e das regiões, até que no folclore alemão ressurgiu, pelas mãos de Goethe e de Thomas Mann, o vulto envolvido de realismo mágico do Doutor Fausto, primeiramente atraído por Mefistófeles em troca da cândida Margarida, e depois na pele do músico Adrian Leverkul (um arremedo de Wagner, de Schônberg, de Nietzsche?), que coçava a cabeça, indeciso entre dois acordes de suas composições, já propenso a introduzir na modernidade um novo solfejo, um novo ouvido e uma nova batuta na história da musicalidade universal. Ambos, Fausto e Adrian, se danaram, irremediavelmente. E a palavra “danou” em linguagem comum quer dizer perdeu, e a palavra “danado” quer dizer pessoa sagaz, invencível.

No Brasil um rosário de penas voa desde o descobrimento e podemos citar, de passagem, a própria carta-tentação de Pero Vaz Caminha, e também a lenda do ludibrio de Caramuru aos índios. Virando as páginas dos séculos encontramos o infame trio Silvério-Pamplona-Malheiros oferecendo-se aos algozes da colonização para delatar os sonhadores da libertação. Depois, o Doutor Francisco Campos a entregar a pinga e a rapadura aos ditadores de 30 e de 64, o Jorge Amado e o Chico Buarque e o Lula a trocaram a fé na luta pelo socialismo por apartamentos de luxo em Paris e pelas propaladas inconseqüências governamentais, advindo então toda uma esquerda fantasiada de petista a trocar as mãos pelos pés no tratamento dos bens públicos, favorecendo o valor infame, demoníaco, chamado crime organizado, que começa nos altos escalões da república e compartilha a liderança com os mafiosos dos presídios de insegurança máxima. Assim fica evidenciado que a pérfida Tentação das Profundas move as pernas e braços de seus cúmplices agraciados dos quinhões do Patrimônio Nacional, estrategicamente loteado de acordo com a conveniência da Cambada. E é assim que, para usar uma imagem de Nabacov “as listas azuis da ternura se partem em mil pedaços”, e o que surge em seu lugar é o Medonho, é o Demonho – e em conseqüência a pior das perdas do ser humano, a perda da dignidade (individual e nacional). E quando isso acontece em termos públicos, abertamente impune e até alardeado, a desmoralização e a indignidade é mesmo coletiva, é do povo, é da nacionalidade. E o que então nos resta? Só nos resta, obviamente, indignarmo-nos. Isso não resolve, mas é uma forma de ajuizar uma opinião, a de não compartilhar da tramóia que nos massacra moralmente. O mau exemplo que vem de cima e que alertava os revolucionários franceses como brado da revolta bem que podia ecoar em nosso despreendimento, em termos similares: os corruptos (eufemismo de ladrões) são poderosos porque suas vítimas estão caídas. Que se levantem, pois!

Lázaro Barreto

« Voltar