Para uma Poética de Vinicius de Moraes: a Noite

A obra faz o poeta e ela se configura na sua poética. Esta se constitui pela manifestação e articulação das questões em que vigoram os seus poemas. Em vista disso alguns poemas se tornam mais conhecidos do que outros, dependendo das questões que mais atraem os leitores. Porque isto se dá não se sabe. Acontece com a obra de muitos poetas. É o caso da obra de Vinicius de Moraes. Ela é multifacetada, o que a levou a ser conhecida em algumas realizações e a outras ficarem como que ausentes e esquecidas. Isso em parte se deve ao grande sucesso de suas letras em parceria com grandes compositores. Algumas letras ultrapassaram o âmbito brasileiro e se projetaram internacionalmente. Claro que não só por causa disso. Ele foi também roteirista de filmes, premiados internacionalmente, escreveu peças teatrais e muitas crônicas. A poética de Vinicius de Moraes é, pois, muito variada e rica, conhecendo um enorme sucesso em muitas de suas facetas.

Já em relação às suas realizações poéticas, alguns sonetos e outros poemas também são tão conhecidos que até são repetidos, muitas vezes até se desconhecendo o autor. Vinicius é, sem dúvida, um poeta popular. Contribuiu também muito para isso a profunda ligação da vida do autor com muitos dos temas por ele tratados. É que em Vinicius não há uma separação entre a vida vivida e a vida experienciada poeticamente. O formalismo do discurso poético, tão caro à tradição ocidental, tem no poeta um profundo questionamento. Um questionamento que o leva a reinscrever a questão do ético em sua vida e em suas composições.

Mas o que é o ético? Quando assim perguntamos não estamos querendo reduzi-lo a uma definição? E não foi justamente isso o que a sua obra poética quis evitar? Claro que não por um desejo de inovar e assim propor novas formas, mas porque nele o apelo do poético queria se fazer vida experienciada. E esta no seu fluir cotidiano e permanente é algo extremamente rico e variado. Essa variação e riqueza é que se fazem presentes em sua obra. Nem sempre estamos abertos para a variedade de uma obra poética. Até porque certas preferências circunstanciais e contextuais acabam por privilegiar algumas composições e deixar outras em repouso. Cabe aos leitores atentos ir resgatando e proclamando aspectos e questões temáticas presentes na obra, mas esquecidas em sua vigência.

A importância de tais leituras de leitores mais atentos é sem dúvida ir mostrando a complexidade de sua obra poética. Só assim se traz a público e se vai configurando aquilo que constitui propriamente a poética de uma obra. E ao mesmo tempo isso vai confirmando a vigência do poético para além do brilho da ribalta e dos palcos epocais e circunstanciais. Nesse sentido, o diálogo do leitor com a obra poética é não só necessário mas também essencial, tanto para os leitores como para o vigorar da própria obra. As questões que são a sua densidade e harmonia encontram assim a ressonância na vigência de um tempo que não passa, mas permanece enquanto operar poético. Para tanto é necessário ir resgatando as dimensões das questões que a constituem.

Isso está acontecendo com a obra poética de Vinicius de Moraes. O convívio dialogal com a obra poética de Vinicius de Moraes levou Elenice Groetaers de Moraes a surpreender e a apreender uma face oculta da sua obra. É o que ela agora apresenta aos leitores em seu livro A poética da Noite em Vinicius de Moraes* (Scortecci, SP, 2007).

A Noite!

O que de misterioso ela traz em si? Por que é tão forte o seu apelo? Só já quem convive com a Noite e ouve-lhe a voz silenciosa é que pode dedicar-se à Noite e proporcionar aos leitores riquezas escondidas, mas reais e vivificadoras, e ir surpreender na obra do poeta essa faceta praticamente desconhecida. Porque Elenice também faz da Noite uma experiência de vida é que ela pode, num diálogo criativo, apreender essa rica faceta da obra de Vinicius. Por isso ela nos oferece uma Noite luminosa. Seu brilho não é para ser captado pelos olhos solares, mas por corpos sensíveis ao que habitando dentro tem mais luz. Porém, ela só brilhará se o leitor fizer a leitura numa postura aberta e dialogal.

Não encontrará o leitor dificuldade de conversar com seu texto porque resultante de uma profunda empatia com a obra, como um todo, do celebrado letrista. Aparece então o que a própria Noite é: singular, aconchegante, acolhedora. E de tal maneira presente e plena que ela se torna uma amiga desejada.

O leitor, ao ver o título desta obra de Groetaers, pode até levar um susto e suscitar, ao mesmo tempo, muita curiosidade. Tudo que se diz e veicula a respeito de Vinicius, o “mito” que em torno dele os meios de comunicação criaram é o de um homem não da Noite. Muito pelo contrário, é o homem das noitadas, da boemia, das bebidas, das muitas mulheres e de muita música. Vinicius – na imagem que os meios de comunicação criaram dele – é a própria agitação da noite brilhante, musical, num permanente viver noite a dentro. Contudo, nada nos dizem da experienciação da Noite como Noite em sua vida. Mas os poemas dizem.

Sem desconhecer essa imagem pública do autor, mostra essa faceta esquecida e ignorada do grande público, mas que está presente e é profunda e de uma importância capital, no todo da sua obra, e pode indagar o que também leva Vinicius a se deixar tomar tão fortemente pela Noite em sua obra e sentido de vida. E é isso que possibilita ir desenhando uma poética da obra de Vinicius de Moraes.

Quem é que hoje se preocupa com o sentido? Talvez mais pessoas do que os meios de comunicação, no seu frêmito comunicacional, nos querem fazer supor. A prova é o próprio Vinicius e sua obra, porque o que importa é a obra. A biografia de um criador múltiplo, como é o poeta, é sua obra poética. É ela que fica e nos convida permanentemente ao diálogo pela leitura. Por que o diálogo é tão importante na nossa vida? Diríamos que é importante porque a Noite é importante, uma vez que ela é a diferença. A diferença é a nossa condição de afirmação, de conquista do que somos. Por isso, dialogamos, não para concordar, anulando a singularidade inaugural e única de cada um, mas para, no encontro das diferenças, apreendermos a riqueza de nossas possibilidades. E isso é tão verdadeiro que o tema Noite é um dos mais antigos e até dos mais recorrentes nas artes. E mais, é uma questão fundadora. Nessa perspectiva, o trabalho de Elenice traz uma riqueza muito grande para o conhecimento de nossas origens, pois vai buscá-las, naturalmente, nos mitos. Este contato com os mitos, no caso, voltados para a Noite, deve provocar no leitor um certo espanto saudável. O mítico está vivo e atuante. Nos mitos temos um encontro marcado com nossas questões, aquelas que nos acompanham desde que nascemos e solicitam permanentemente um posicionamento para que nossa vida tenha sentido.

O Mito faz pensar, como a Vida faz pensar, como a Noite na obra de Vinicius faz pensar. É que da Noite não nos vem o medo nem a proximidade da morte, mas uma possibilidade de que, tornando a vida mais recolhida e povoada pelas falas do que em nós ainda é Noite, da Noite se faça a luz que ilumina a cada um. É que da Noite, como nos narra o Mito, nasceu Eros, nasceu o Amor e, com ele, o Céu e a Terra. E se, impulsionados por Eros, buscamos a luz do dia e a vida da Terra, também na Noite e pela Noite sentimos o apelo de sentido de tudo isso, ao nos voltarmos para nossas origens: a Noite mítica inaugural e primordial.

Manuel Antônio de Castro

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