UMA RESNHA É UMA RESENHA É UMA RESENHA

Foram-se os tempos, ao que parece, nos quais a resenha de um livro poderia ser tão consagradora quanto a que José Lins do Rego recebeu após escrever Menino de Engenho (1932). João Ribeiro publicara (neste Jornal do Brasil ***) uma avaliação tão elogiosa daquela estréia literária que o escritor paraibano acabou dormindo com o recorte da resenha no bolso do pijama. A surpresa e o encantamento não se encontram, porém, apenas do lado do autor de uma obra bem-aceita: o crítico também expressa deslumbramento quando percebe novos valores na literatura. É o que aconteceu com Antonio Candido quando escreveu sobre outra estréia, em resenha de 1944: “tive verdadeiro choque ao ler o romance diferente que é Perto do Coração Selvagem, da sra. Clarice Lispector, escritora até aqui desconhecida para mim.” Em seguida, tentou traduzir os aspectos essenciais desse “choque”, buscando sua melhor formulação: “este romance é uma tentativa impressionante de levar nossa língua canhestra para domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério, para o qual, se sente, a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito, apto a nos fazer penetrar em alguns dos labirintos mais retorcidos da mente.”

No ano anterior, uma estréia na poesia já havia captado a atenção do crítico, que se via chamado a apresentá-la aos seus leitores: “Pedra do Sono é a obra de um poeta extremamente consciente, que procura construir um mundo fechado para a sua emoção, a partir da escuridão das visões oníricas.” Quanto a João Cabral de Melo Neto, o crítico observava: “Não o chamo, porém, de cubista, porque ele não é só isso. O seu cubismo de construção é sobrevoado por um senso surrealista da poesia.”

Por fim, recordem-se as palavras de Assis Brasil sobre um novo contista: “Podemos agora destacar o volume de contos de um estreante, Rubem Fonseca (Os Prisioneiros , 1963) , no nível de qualidade dos poucos lançamentos. Sua presença como criador, com algo de originalidade, leva-nos a destacá-lo com entusiasmo.” Com a publicação de A Coleira do Cão, em 1966, o escritor recebeu o seguinte julgamento de Wilson Martins: “O sr. Rubem Fonseca vence brilhantemente a prova do segundo livro, muito mais perigosa e repleta de ciladas que a do primeiro. (...) A literatura brasileira ganhou um dos seus escritores mais importantes, pois é evidente que ele se inscreve não somente entre os que têm ou podem ter um eventual interesse por si mesmo, no interior dos seus limites individuais, mas, também, entre os que acrescentam alguma coisa ao gênero que praticam. (...) “A Força Humana”, por exemplo, não é apenas um dos melhores contos brasileiros até hoje escritos; é, também, um dos melhores contos da literatura universal.”

Essas numerosas citações dizem muito do impacto da opinião do crítico profissional para a consolidação de uma obra e para a circulação de idéias. Mas não conseguem ocultar os protestos que as resenhas já merecerem de autores analisados e, também, de autores desconfiados do comércio existente (seja no jornalismo, seja numa vaga “indústria cultural”) para o estabelecimento das reputações.

George Orwell escreveu, em 1946, a mais conhecida diatribe contra o resenhista, colocando-o num ambiente sórdido de redação de jornal no qual deve enfrentar pelo menos três livros sobre cujos temas é completamente ignorante. Após descrever as frases vazias que formam o núcleo das apreciações de rotina (por exemplo, “um livro que não se deve perder”, “essas pequenas falhas não atrapalham o conjunto”), o romancista inglês conclui que o resenhista “está derramando o seu espírito imortal no ralo, meio litro a cada vez.” Anos depois, também fatigada com a situação nos suplementos literários, Elizabeth Hardwick escreveu um artigo sem meias palavras na revista Harper's (outubro de 1959), “O Declínio da Resenha de Livros”, no qual reclamava da inconsistência de opinião sobre os livros publicados e da existência de uma “acomodação universal, como se lobotomizada, que reina.” Foi o bastante para que, em 1963, um grupo de escritores e jornalistas lançasse The New York Review of Books, com o objetivo principal de arregimentar um conjunto de colaboradores para examinar e opinar, de maneira crítica e até polêmica, sobre os lançamentos em poesia, ficção e não-ficção.

Eis, portanto, uma conclusão incontestável do embate entre as resenhas que antevêem e consagram, as resenhas escritas burocraticamente, por força do mercado, e as resenhas sem idéias: são muitos os que lêem resenhas. Possivelmente, o público das resenhas é maior do que o público de livros – o que justifica todo o rigor aplicado à descrição, análise e discussão de um lançamento, seja o seu autor um clássico ou um desconhecido. O trabalho da resenha e da crítica, em que pese o eventual menosprezo de quem o contrapõe ao trabalho da criação, tem a mesma importância da recensão entre acadêmicos (peer review), ou da orientação de tese ou do parecer editorial.

Mas existe algo de novo no ar: possivelmente, a rapidez e a quantidade das informações, multiplicadas por sua difusão pelos mais diversos meios, incluindo os eletrônicos, têm forçado a resenha a assumir a condição de peça obsoleta e ultrapassada. Agora se pode consultar com facilidade os blogs de pessoas ou grupos que se devotam a um escritor, além das indicações e comentários de leitores em sites do tipo amazon.com, ou mesmo em programas de auditório – o que decretaria a morte do resenhista e do crítico literário. Juízos sumários dos proprietários de revistas e jornais podem decidir pelo fechamento dos suplementos ou ao menos da seção de livros, uma vez que se comprove serem pouco lucrativos. Essa tendência destrutiva – o espaço dos livros substituído pelo espaço dos anúncios – já se manifestou em jornais como Los Angeles Times e Village Voice . É difícil avaliar que forma de cultura – ou melhor, que qualidade de cultura – poderá brotar de decisões milimetricamente fundamentadas nos critérios pouco diletantes do retorno financeiro imediato. Ironicamente, talvez seja necessário buscar sugestões num futuro livro de auto-ajuda (por exemplo, Como Sobreviver Sozinho à Obscuridade) para fugir às forças que podem exterminar o debate.

Felipe Fortuna

*** Publicado no Jornal do Brasil (RJ), Caderno Idéias & Livros, em 24 de novembro de 2007
Enviado pelo autor

« Volta