DOIS RETRATOS DE UM ROSTO

                   O acaso reuniu numa parede de minha casa os retratos de dois adolescentes nascidos em épocas e países diversos. Seus destinos e seus idiomas contrampõem-se. Não obstante, os dois retratos produzem em que os olha juntos em minha casa a sensação de uma assombrosa semelhança. Dir-se-ia a mesma pessoa. Os dois possuem certa qualidade indomável no olhar. Os dois sustém mechas hirsutas nas cabeças. As mesmas sobrancelhas, o mesmo naris, os mesmos jovens rostos provocantes.
                   Trata-se de uma fotografia de Rimbaud, feita por Carjat, quando o poeta francês tinha dezessete anos, e de um retrato de Maiakovski, feito ao jovem poeta soviético em 1909, quando estudava na Escola de Arte Aplicada Stroganov.
                   Estas duas imagens adolescentes têm o caráter comum que lhes deu a contradição na primeira etapa da vida, um cenho de desdém e de dureza: são dois rostos de anjos rebeldes.
                   Uni-los-á talvez algum signo secreto que revela de algum modo a substância dos descobridores.

                   Ambos o são: Rimbaud reorganiza a poética fazendo-a alcançar a mais violenta beleza. Maiakovski, soberano construtor de poesia, inventa sua aliança indestrutível entre a revolução e a ternura. E estes dois rostos de jovens descobridores se uniram por casualidade numa parede de minha casa, olhando-me ambos com os mesmos olhos com que exploraram o mundo e o coração dos homens.
                   Mas, falando de Maiakovski, sabemos agora que ele completaria por estes dias setenta e cinco anos de idade (***). Teríamos podido encontrá-lo e conversar, talvez tivéssemos sido amigos.
                   Este sentimento me produz uma impressão estranha. É quase como se me provassem que poderia ter conhecido Walt Whitman. Tando andaram a glória e a lenda do poeta soviético, que me custa vê-lo entrar, na imaginação, no restaurante Aragby de Moscou, ou simplesmente contemplar sua grande estatura num cenário, recitando esses versos escalonados que parecem regimentos assaltando posições com o ritmo crepitante de suas vagas sucessivas, envoltas em pólvora e paixão.
                   É verdade que sua imagem e sua poesia permaneceram como um ramo de flores de bronze nas mãos da Revolução e do novo Estado. São flores indestrutíveis, está claro, bem armadas, metálicas e firmes, porém não menos fecundas por isso. Carreadas pelo vento da transformação, as estrofes de Maiakovski tomaram parte na transformação e essa é a grandeza de seu destino.
                   É uma posição privilegiada: a integração de um cantor verdadeiro com a mais importante época histórica de sua pátria. Nisto se separa para sempre sua poesia da de Rimbaud: Rimbaud é um grandioso derrotado, o mais glorioso dos insurgentes perdidos. Maiakovski, apesar de sua trágica morte, é elemento sonoro e sensível de uma das maiores vitórias do homem. Nisto se parece mais com Whitman. Formam parte da luta e do espaço de grandes épocas. Whitman não é um elemento decorativo da guerra emancipadora de Lincoln: sua poesia se desenvolve com a sombra e a luz da batalha. Maiakovski continua cantando na paisagem urbana de fábricas, laboratórios, escolas e agriculturas de seu país. Sua poesia tem o dinamismo dos grandes projéteis interespaciais.
                   Setenta e cinco anos teria completado nestes dias Wladimir Maiakovski. Que pesar que não esteja entre nós!

Pablo Neruda

Do livro: Para nascer nasci, trad. Rolando Roque da Silva, Difel, 3ª ed., 1980, RJ
____________

(***) Maiakovski nasceu em 19/7/1893, portanto esta crônica é de 1968.

« Volta